sábado, 20 de setembro de 2014

DOIS POEMAS DA TRANQUILIDADE


I

Deve haver uma maneira tranquila
uma tranquilidade
uma certeza.
Deve haver uma febre
uma febre que seja, quando menos,
que nos dê olhos para ler tudo.
Depois dizem que há uma salvação...

Da minha infância
não guardo agora senão o chão que piso
e esse não chega.
Talvez a minha face
o meu vulto
a sombra
possam servir de algo.
Mas não.

Assim sem alegria
arrefecido, antigo
como posso comover-me
arder exausto
ou beijar o ar
o ar simplesmente
enleado!

II

Porque não posso senão trazer esta humildade
como posso dar-me ou pedir-me
se me pedem e me dão
dizendo fazê-lo por uma esperança.
Mas eu vejo
o que a morte me tem sido para que veja
e não respondo ao que imagino
porque sei que só posso desejar o que desejo.


Fernando Alves dos Santos (n. 1928 - m. 1992), in Textos Poéticos (1957). «No primeiro livro, o Diário Flagrante (1954), destaca a presença do amor que dá sentido a uma existência marcada pela experiência da solidão e do silêncio na atmosfera muitas vezes asfixiante duma paisagem carregada de signos de negatividade, nocturnidade, vaguedade, deserto e exílio — a noite, o outono, a neblina, a charneca (com Florbela invocada qualificando o substantivo: «charneca florbela») —, um sentido traduzido em termos românticos de convulsão na presença do sublime na natureza, nas ideias ou nas sensações (...). E, na esteira do estado de tensão romântica entre a realidade e o desejo, o sonho como espaço ideal de liberação frente ao espaço quotidiano e real e simbólico da cidade e como caminho para o voo do poeta à procura dum além luminoso que pode ser simples miragem no deserto ou armadilha que o sol prepara ao novo Ícaro. / Voar, fugir, sonhar, procurar uma realidade poética onde respirar e viver: a viagem, essa obsessão do poeta moderno, que sempre esteve presente no imaginário do autor (...), percorre como tema recorrente (às vezes através das alusões a um emblemático comboio) os poemas do seu segundo livro, Textos Poéticos (...)» (Perfecto E. Cuadrado, in Diário Flagrante [Poesia], 2005). 

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