Apetecia-lhe escarrar a alma contra o pára-brisas, para que esse escarro ficasse a boiar na solidão, a fazer corpo com ela, e aí se diluíssem os traços fisionómicos de todos os transeuntes. «Uma aberta», implorou mentalmente, «uma aberta», como se as nuvens lhe entrassem na garganta e a névoa o sufocasse. Ao aguardar vez para entrar num dos grandes eixos da cidade o aroma pisado a ervas trouxe-lhe dum tímido canteiro o primeiro sinal da primavera. Aspirou-o como se o esgotasse, como se tudo o que naquelas ervas houvesse de fragrância dentro de si pudesse fazer corpo com os olhos, os ouvidos e o palato. «Consubstanciação», pensou, «transubstanciação». Subitamente sucederam-se parkings, estações de serviço, anúncios de escritórios, versiekerung, na própria treva que os portais bolçavam havia algo de estagnado, amarelado, a luz seguia algures o seu percurso, sentia a vida nos escapes dos camiões como se ao meterem as mudanças os condutores metessem outra realidade, era pelo menos essa a sensação que dava quando ouvidos na distância. Num carro ao lado beijavam-se dois heterossexuais aproveitando mais uma paragem forçada, semáforo ou novo engarrafamento. O que do almoço lhe restava na lembrança era mais real do que o que dele trazia no estômago, rua após rua, esquinas, travessas sucedendo-se às avenidas, gruas subitamente hieráticas, totémicas, um escarro, a luz tornando a solidão tangível, luz onde as janelas se rasgam como coisas vivas, como se por trás delas houvesse água, poços onde a treva fermentasse, de uma janela aberta chegaram-lhe aos ouvidos duas ou três notas de um piano, duas ou três notas musicais onde uma vida inteira se poderia cifrar, bastaria que para tanto se encontrasse uma forma, um estilo (diria o poeta), algo que nos seus moldes contivesse o esparramar da vida. Ia chegando atrasado, disso não havia a menor dúvida.
Como se algures, num plano que ele apenas intuía, a luz rodopiasse velozmente, sorvida por um invisível ralo que ele trouxesse dentro do seu espírito.
Um céu de funcionários.
Luís Miguel Nava (n. 1957 - m. 1995), poema inédito incluído em Poesia Completa 1979-1994. «Estreado em 1979 com Películas e tendo publicado um total de seis livros até 1995, Luís Miguel Nava deixou-nos uma escrita situada na intersecção entre pelo menos três vectores essenciais: uma extrema criatividade metafórica, com um amplo poder transfigurador; uma vontade narrativa muitas vezes espraiada através de poemas em prosa; e ainda uma extrema vigilância do fluxo discursivo, que lhe adensa o sentido e lhe confere uma força expressiva pouco frequente na nossa tradição lírica» (Fernando Pinto do Amaral, no prefácio a Poesia Completa). «A estranheza do mundo que a poesia de Luís Miguel Nava nos apresenta é, certamente, uma das suas mais fortes e ostensivas características. Como nota Carlos Mendes de Sousa, naquele que é o mais completo estudo sobre ela escrito, «nesta poesia podemos encontrar reflexos da grande herança das distorções recebidas através da pintura de recorte expressionista»» (Gastão Cruz, in posfácio a Poesia Completa).
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