Por onde quer que se vá, todas as referências biográficas
à britânica Eimear McBride (n. 1976) apontam para um facto: o romance de
estreia, intitulado Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada (Elsinore. Março de
2016), levou nove anos a ser publicado, perdido por dezenas de editores que ou
o ignoraram ou simplesmente deixaram passar os anos até que o facto pudesse ter
interesse editorial. É um sinal dos tempos, a recusa repetida funciona como uma
espécie de credencial. Isto sucede porque tem-se a ideia de que a boa
literatura é mau comércio, pelo que quanto mais difícil for a publicação
maiores serão as probabilidades de estarmos face a boa literatura. Quando a
créditos tais se juntam comparações com Beckett e Joyce, ora exageradas, ora
algo forçadas, o caso torna-se intrincado. Evitarei precipitações similares,
até porque o que de beckettiano e de joyciano possa haver em McBride é o que de
menos interessante há em Beckett e em Joyce, ou seja, uma intenção de explorar
os limites da linguagem desconstruindo a sua estrutura convencional.
Neste caso, o desafio colocado à tradução exemplar do
poeta Daniel Jonas assenta todo ele na perturbação sintáctica do discurso. Com
uma pontuação peculiar, sobrecarregada de pausas e de inversões, a autora
procura reflectir o estado tumultuoso das personagens, sobretudo a partir do olhar
agitado, confuso e desorganizado da narradora. Exemplo 1: «Nunca. Mas nunca.
Toques. Nessa. Coisa. Horrorosa. Vai-te. Dar. Verrugas. Isso. É. Hor. Roro. So»
(p. 19). Exemplo 2: «Seucagalhãodemerdainútildeustevalha» (p. 25). Exemplo 3:
«Eu digo estúpida vai à merda vai-te foder vaca puta punheteira merdosa
fodilhona puta porca» (p. 32). Exemplo 4: «Sei soletrar mas é muito rápido para
poder perceber f.u.g.i.r com o s.a.c.r.i.s.t.ã.o e vivem em p.e.c.a.d.o em tal
e tal lugar» (p. 39). Fiquemos por aqui no que toca a exemplos. Servirão eles
para dar uma ideia das dificuldades colocadas à leitura, dificuldades similares
às que se nos colocam no relacionamento com um espírito nervoso, assaltado de histeria,
traumatizado, debitando de um jorro os seu males em discurso tão desarticulado quanto
o pensamento.
Esta sintaxe como que exibe a respiração da personagem, uma
despersonalização patológica que nunca perde por total a lucidez. Produz, em si
mesma, um efeito descritivo da personalidade que enforma o narrador. Tomando-lhe
o pulso, o leitor coloca-se perante um desafio que não está tanto ao nível da
interpretação como está ao nível da aceitação. Não podemos sequer afirmar que Uma
Rapariga é Uma Coisa Inacabada é um romance difícil. Não o é no sentido de
uma exigência interpretativa e até etimológica como o são certos livros de
Joyce. Também não o é no sentido filosófico sugerido por Beckett. É, contudo,
um romance exigente, na medida em que solicita ao leitor, espera do leitor, uma
predisposição de ouvinte. O aspecto mais fascinante deste labor formal é
precisamente esse efeito alcançado sobre o leitor, o qual se descobre enquanto espectador
tanto quanto mais penetra no texto.
A ironia está em que a resistência da personagem central à
austeridade católica da sua família desestruturada vislumbra no exercício da
escrita, e na subsequente relação com um leitor abstracto, um ambiente tanto de
divã como de confessionário. Em suma: «O que fiz eu? Sexo como. Ir à missa.
Confissão» (p. 115). Concorre a favor desta relação uma história, afinal, tão
realista e compreensível como tantas de famílias disfuncionais que pululam no
mundo civilizado. Uma jovem rapariga sexualmente iniciada por um tio, um irmão
com um tumor cerebral, um avô austero, uma mãe frustrada, uma mulher que é uma
rapariga, uma rapariga que é uma coisa inacabada… O cenário é tão realista que
dispensa frivolidades como as referências à entrada na vida adulta, conflitos
essenciais entre educação religiosa e descoberta da sexualidade ou eventuais
tomadas de posição sobre a condição feminina no seio da reinante hipocrisia
católica.
Uma outra dimensão seduz-nos para o imo do texto,
cativa-nos apesar dos espinhos, e essa dimensão é a rapariga que a páginas
tantas descobre o que tantos de nós já descobrimos acerca de nós próprios: «Não
há mais espaço nesta parte de mim» (p. 83). Eimear McBride escreveu um
belíssimo livro, conseguiu equilibrar a exigência experimental da linguagem com
uma história pungente. O grande mérito deste romance está, precisamente, em
obrigar o pensamento do leitor a desviar-se das convenções que o (de)formam, a
libertar-se delas e a colocar-se simplesmente na posição de ouvinte. Não ser
intérprete senão pela capacidade de ouvir, faculdade tão nobre e empobrecida em
tempos de ruídos ensurdecedores.
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