Há tempos, referi-me a Elmore Leonard (1925-2013) a
propósito de Joe Kidd (1972). Muito antes de ter escrito esse western para John
Sturges, Leonard publicou um dos seus mais famosos contos: Three-Ten to Yuma (1953).
O mesmo conheceria uma adaptação cinematográfica 4 anos depois, assinada por
Delmer Daves e com os actores Glenn Ford e Van Heflin a protagonizarem os
papéis centrais. 3:10 to Yuma/O Comboio das 3 e 10 (2007) é um remake do
clássico da década de 1950. James Mangold (1963), realizador responsável pela
recuperação desta história extraordinária, estreou-se no western depois de
obter considerável sucesso com Walk the Line (2005), uma biografia do escritor
de canções Johnny Cash a merecer várias nomeações para os Oscars e uma
estatueta dourada pelo desempenho de Reese Witherspoon como melhor actriz do
ano. 3:10 to Yuma não teve a mesma sorte, ficando-se por duas nomeações em
matéria de som. Isto apesar das excelentes performances de Russell Crowe e de Christian Bale, assim como dos desempenhos secundários mas igualmente marcantes
dos jovens actores Logan Lerman e Ben Foster.
Devemos sublinhar, antes de mais,
a capacidade mostrada por Mangold para recuperar um clássico sem o destruir. As
linhas fundamentais mantêm-se inalteradas, adquirindo um novo potencial
reforçado por inovações técnicas que não se sobrepõem à narrativa nem nos
distraem das diversas nuances exploradas no argumento. Podemos olhar para 3:10
to Yuma como para uma clássica exploração do confronto entre opostos, o bem
encarnado num humilde agricultor a tentar singrar contra ventos e marés (no
caso, tempos de seca e de progresso industrial) e o mal no corpo de um assaltante
de comboios e de diligências que servem a prepotente indústria dos caminhos-de-ferro.
Não obstante ser essa uma das faces do filme, há uma outra que se desenvolve
mais em torno do que aproxima os opostos do que à volta da caracterização
maniqueísta do bem e do mal, da justiça e da injustiça. Essa face é a mais
humana das duas, no sentido em que nos desloca para o imo das personagens. Já
não estão em causa desencontros sociais nem problemas da consciência, pelo
menos não tanto quanto emergem das diversas cenas até à "anti-épica" sequência
final traços de personalidade profundos e até psicanalíticos.
Nesse
fundo das personagens encontraremos um veterano a quem a guerra levou uma perna e parte do
orgulho, pai de dois filhos que o impelem a provar ser homem de coragem e de
palavra, capaz de ultrapassar os obstáculos da vida como de sobreviver às
mentiras da guerra que o trazem ferido por dentro. E do lado oposto vislumbraremos
um fora da lei, lobo alfa de uma matilha sanguinária, a descobrir dentro de si
um apelo que recusa e ao qual faz questão de impor uma insensibilidade moral que
os gestos não denunciam: cita a Bíblia de cor, é cavalheiro para com as
senhoras, passa o tempo a desenhar. Seria precipitado partir do princípio que
entre ambos, afinal, nada se opõe. Mas não é precipitado chegar à conclusão que
entre ambos há algo que os aproxima, sendo que esse algo é uma forte razão para
descrerem de si próprios e, por isso, se superarem. Um julga-se cobarde,
incapaz de viver com a mentira que o persegue. O outro julga-se podre, incapaz
de praticar o bem e a justiça. Ora, toda a história do filme conflui, precisamente, para
esse ponto em que ao se negarem as personagens se afirmam.
Eis um paradoxo substancial
do humano, particularmente trágico nesse sentido em que entendemos toda a
vivência da religiosidade. O que aqui está em causa é a capacidade do
homem se transcender, de não se reduzir ao que sempre foi, de ir além da sua
natureza assumindo sobre ela um forte autodomínio. Muitas vezes, ao rever este
filme, interroguei-me acerca do remate algo superficial. Podia o filme ter
terminado em vários momentos da sequência derradeira. Porquê terminar com aquela
cena aparentemente patética depois do clímax a que assistimos? Refiro-me à cena
em que o terrível Ben Wade, já entregue às autoridades e sentado no interior da
cela, assobia para o cavalo que desata a correr ao lado da carruagem em
andamento. Apontamento tão irónico quão metafórico, o do homem exercendo seu
domínio sobre o animal. 3:10 to Yuma podia ser resumido a isso mesmo, à fórmula
socrática para o bem supremo: autoconhecimento e, por consequência,
autodomínio, ou seja, o instinto a ser superado pela determinação do saber:
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