Jacques Peuchet (n. 1758 – m. 1830) seria hoje, muito
provavelmente, um ilustre desconhecido, não fora ter atraído a atenção de Karl
Marx (n. 1818 – m. 1883) por causa de um capítulo nas suas Mémoires tirés des
archives de la police de Paris: pour servir à l’histoire de la Morale et de la
Police, Depuis Louis XIV Jusqu’a Nos Jours (1838). Concebidas quando era
arquivista da Polícia, as memórias continham um capítulo intitulado Du suicide
et de ses causes. Foi precisamente esse texto que Marx se encarregou de traduzir,
de truncar e de comentar no final do ano de 1845, quando vivia na Bélgica após
ter sido expulso de França, publicando-o no ano seguinte no mensário
Gesellschaftsspiegel, concebido por Engels e Moses Heß para «retratar a miséria
social e o regime burguês». Peuchet havia sido economista (atribui-se-lhe a
cunhagem do termo “burocracia”), assumindo ao longo da vida cargos
administrativos que o levariam aos arquivos da polícia de Paris. As memórias
póstumas são de rigor duvidoso, ainda que para o tema aqui em causa pouco
importe o rigor face ao naturalismo das descrições. Peuchet: Do Suicídio (Antígona,
Junho de 2016, tradução de José Miranda Justo) consiste no artigo de
Karl Marx publicado em 1846, acompanhado de três prefácios, um para a edição alemã,
os outros para a primeira e segunda edições americanas, assinados,
respectivamente, por Michael Löwy, Kevin Anderson e Eric A. Plaut. Antes de
mais, convém sublinhar que estamos perante uma obra deveras incomum. Não tendo
sido escrito pelo próprio Marx, o texto não revela sequer um cunho político,
filosófico ou económico. No entanto, como aponta Löwy, «Marx, por diversas
vias, impõe o seu selo sobre o texto: por intermédio da sua introdução, pelos
seus comentários, (…) pela sua escolha dos excertos e por meio das modificações
levadas a cabo na tradução» (pp- 10-11). Podemos em suma concluir que o que no
texto de Peuchet cativou Marx foram os exemplos empíricos de uma sociedade enferma,
composta por indivíduos humilhados, isolados, desprotegidos, agredidos por
convenções castradoras da pessoa humana. Os casos de suicídio relatados,
mormente de mulheres, assinalam com axiomática vivacidade o carácter desumano
da sociedade capitalista e das suas clássicas instituições, nomeadamente a tirânica
família burguesa, realçando o servilismo a que estão sujeitos indivíduos de
todas as classes. O problema é transversal, não é de classe, já que a raiz do
mesmo está numa ética fundada na hipocrisia e numa moral reaccionária que não
atende à emancipação dos indivíduos. Ao assinar Peuchet: Do Suicídio, Marx não
estava interessado em discutir ou sequer promover uma investigação acerca das
causas e motivações do indivíduo que resolve matar-se. O seu interesse era mostrar
o suicídio enquanto sintoma de uma estrutura social deficiente, sendo só por isso relevantes as razões sociais que levam à “morte de si”: a miséria, a
opressão, a família como microcosmo de uma sociedade hipócrita que transforma
em propriedade, à luz de um código civil indiferente à singularidade humana,
cada um dos seus cidadãos. É este o contexto a partir do qual Marx desenvolve
uma tese especialmente focada na defesa dos direitos da mulher e na sua
libertação do jugo social, essencial e fundamentalmente determinado pela
vontade masculina. Como bem recorda Kevin Anderson, Marx «recusava-se a separar
a emancipação do trabalho da emancipação da mulher, defendendo que “o homem
mais oprimido pode oprimir alguém, a sua mulher; a mulher é a proletária do
próprio proletário”» (pp. 30-31). Apesar de saber que a maior taxa de suicídios
compreendia (como ainda hoje compreende) pessoas do género masculino, Marx
aproveita os exemplos oferecidos pelas memórias de Peuchet para acusar o “autoritarismo
da família burguesa”, a “tirania parental” e a “violência matrimonial” exercidos
sobre a mulher, como exemplos de alienação do indivíduo não só aceites, como também
promovidos, por uma opinião pública reprodutora deste mal social: «Cora-se
perante a opinião pública quando se a vê de perto, com a sua cobarde
animosidade e as suas sujas suposições. A opinião é demasiado fraccionada pelo
isolamento dos homens, demasiado ignorante, demasiado corrompida, porque todos
são estranhos face a si mesmos e face aos outros» (p. 139). Do Suicídio não é,
pois, um estudo sociológico como o levado a cabo por Émile Durkheim (n. 1858 –
m. 1917), não é um ensaio moral acerca da culpabilidade como o desenvolvido por
David Hume (n. 1711 – m. 1776), não é sequer uma especulação filosófica, de
tipo existencialista, como a inigualavelmente explanada por Albert Camus (n.
1913 – m. 1960). É um texto de denúncia dos «males da vida
privada».
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