Não me recordo de viver sem música por perto. A hipótese
disso vir a acontecer é-me mais insuportável do que a ideia da morte. Se há
agradecimento que devo à família, foi desde muito cedo ter-me rodeado de
música. Nem sempre boa, quase sempre razoável para cima. Mas música. Lá por
casa havia, por exemplo, umas caixas com sucessos compilados que as Selecções
do Reader’s Digest se encarregavam de fazer chegar à província. Eu tinha menos
de 10 anos e passava muitas horas a ouvir rádio ou à volta desses discos, que
fazia rodar na primeira aparelhagem que houve em casa: um prato isolado
directamente ligado a duas colunas. Numa dessas colectâneas da década de 60
ouvi, pela primeira vez, House of the
Rising Sun, na versão dos The Animals, Mr. Tambourine Man, na versão dos The
Byrds, e All Along The Watchtower, na versão da The Jimi Hendrix Experience, todas
atribuídas a Bob Dylan. Na realidade, a primeira é um tradicional de New
Orleans, lamento pelo percurso da pobreza à prostituição que Dylan incluiu no
álbum de estreia. Além dessas versões, havia uma canção do próprio: Lay Lady
Lay. O nome daquele escritor de canções repetia-se várias vezes, era impossível
não atrair atenções. Acresce que os temas se distinguiam dos demais por
razões que só a intuição infantil consegue compreender. Não tinham a ligeireza
melódica dos The Beatles nem o imediatismo rockeiro
dos The Rolling Stones (magnífica, a versão que anos mais tarde a banda de Mick
Jagger e Keith Richards ofereceu a Like a Rolling Stone). A voz de Dylan era
diferente, os arranjos eram diferentes, havia em seu redor a estranheza
provocada pelo génio. Não posso garantir a data exacta em que aportou na Rua de
Santa Bárbara a dose dupla de More Bob Dylan Greatest Hits, mas sei que por
essa altura (14, 15 anos) era rapaz que ouvia The Doors, Neil Young, Dire
Straits, Simon & Garfunkel…
Bob Dylan reunia dois universos que sempre me
agradaram, o das canções folk acompanhadas por guitarra acústica e harmónica, o
dos blues inclinados, aqui e acolá, para o rock and roll da velha escola. Watching
The River Flow, porta de abertura para More Bob Dylan Greatest Hits, é na sua
essência uma vulgar canção rock and roll. Mas se lhe pegarmos pela letra, então
a vulgaridade esvai-se para dar lugar a uma extraordinária crónica social sobre
o passar do tempo e a inutilidade de esforços absurdos, testemunho existencial
sobre inevitabilidades que denunciam a fragilidade do humano sem dissiparem por
completo a utopia: «If I had wings and I could fly / I know where I would go / But
right now I'll just sit here so contentedly / And watch the river flow». De facto,
Dylan começa a parecer invulgar quando paramos para o ler, quando lhe prestamos
atenção às letras e nele descobrimos um poeta extraordinário que, não por acaso,
foi produzindo ao longo de décadas inúmeras canções emblemáticas. Independentemente
das polémicas em que se envolveu, algumas delas contribuindo para uma deterioração
da imagem de singer/songwriter socialmente empenhado, vislumbramos na sua obra
um compromisso de raiz humanista, desinteressado dos radicalismos que à
esquerda e à direita marcaram a sua geração.
A páginas tantas do primeiro
volume de Crónicas, afirma: «A par dos comboios e dos sinos, a rádio fazia
parte da banda sonora da minha vida». A alusão aos comboios e aos sinos não é acidental neste maná sonoro.
Os comboios são um dos símbolos maiores da unidade americana, estão associados
à transformação de uma paisagem que foi dobrada à custa de muita exploração
humana e lançou para a miséria e para o desamparo inúmeros cidadãos. Mas os
comboios estão igualmente associados à facilidade de deslocação, a um certo
nomadismo em que as metamorfoses líricas de Bob Dylan embarcaram desde muito cedo.
Essa ideia de deslocamento e de mudança, que arrasta consigo dor e sofrimento,
mas ao mesmo tempo gera expectativas e alimenta a esperança dos homens, é um
dado concreto da canção dylaniana que não podemos negligenciar. Daí também os
sinos, elemento que aponta para uma das fases mais mal-amadas e incompreendidas
de uma longa carreira. Ocorre-me um álbum como Saved (1980),
polémico registo a abrir a década de 1980, com aproximações ao universo
religioso através de uma apropriação particular da música gospel e dos
espirituais negros. A verdade é que nesse álbum elabora-se uma outra aproximação, a
qual seria deveras pertinente à luz dos acontecimentos actuais como o foi à
época. Trata-se de uma aproximação entre raízes étnicas que vem ferindo de
morte a tal unidade da América enquanto nação, segregando estirpes em função da
cor da pele ou das crenças religiosas.
Eis-nos perante uma obra que congrega,
cuja característica mais evidente e porventura mais vertebral é precisamente a
de reclamar a humanidade como um todo. Ultrapassada a fase do vinil, recordo-me
que o primeiro CD de originais de Dylan que adquiri foi Oh Mercy (1989). Em
retrospectiva, é o ano da retirada da União Soviética do Afeganistão, ano de manifestações em Pequim, ano da queda do
Muro de Berlim… Apesar dos temas algo melancólicos superiormente produzidos por
Daniel Lanois, dos mais bonitos, por assim dizer, que conhecemos na longa
carreira de Dylan, o álbum abre com um perturbador testemunho dos tempos. A
canção Political World foi a banda sonora ideal para o que estava a acontecer e
se adivinhava enquanto efeito dos acontecimentos de então. Volto a escutá-la
hoje, em época de Trump, de Erdoğan, de Daesh e afins. Infelizmente, uma
canção destas não morre:
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