O percurso de Robert Altman (n. 1925 – m. 2006) esteve
desde muito cedo ligado ao western, nomeadamente através da realização de
alguns episódios da mítica série Bonanza. McCabe & Mrs. Miller/A Noite Fez-se Para Amar (1971), filmado já para o grande ecrã, ofereceu uma outra
consistência a essa ligação ao mais tradicional dos géneros cinematográficos. Mas
Altman nunca foi um tradicionalista, muito menos um conservador preocupado em respeitar
os cânones e obedecer a fórmulas. A prova acabada desse espírito desafiador é o
comedy western Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’s History
Lesson/Buffallo Bill e os Índios (1976), propondo-se usar o cinema no sentido
oposto ao que mais vezes ele segue e serve: o da mistificação. O realizador de
Popeye (1980) mostra-se interessado em desmistificar as figuras tipo de uma
História rica em fabulações, colocando as suas personagens no plano em que a
farsa é desmascarada.
Neste filme, a lenda de William Frederick Cody,
popularizado como Buffalo Bill, surge configurada no ambiente propício de um espectáculo
circense sobre o Oeste Selvagem. De facto, William Cody tornou-se mundialmente
famoso pelo Buffalo Bill’s Wild West Show, onde encenava feitos supostamente heróicos
de uma nação menos interessada nos factos do que na consolidação dos seus ícones.
Ora, para esta consolidação muito contribuiu a indústria cinematográfica
durante o séc. XX. Robert Altman transporta-nos para um pouco antes desse advento,
descarnando até ao osso a superfície, a fachada, o embuste, para que possamos perceber
o modus operandi de uma máquina de fabricação de lendas.
O Buffalo Bill interpretado por Paul Newman não é nenhum
exímio caçador de búfalos, ícone do Oeste selvagem, mas antes o director e a
estrela principal de um show cujo propósito final é transformá-lo num herói da
nação. Parco herói, assim nos aparece, preocupado em ser visto sem peruca,
alcoólico, ardiloso, oportunista, até sexualmente incapaz, vulgar, demasiado
vulgar, excepto quando em delírio mental parece soltar algumas das suas
angústias mais íntimas, nomeadamente a consciência da mentira que representa.
Numa fase em que o show requer novidades para se manter de pé, lembra-se de
introduzir no espectáculo o chefe índio Sitting Bull. Tope-se a ironia.
De facto, Touro Sentado fez parte do show de Buffalo Bill
durante alguns anos. Como e em que circunstâncias, não sabemos. Altman
desloca-o como quem oferece vida a um fantasma, posicionando-o num lugar de
resistência dentro do próprio espectáculo. As suas reivindicações serão uma dor
de cabeça permanente para Buffalo Bill, que não está interessado em contar a
história como ela realmente se passou. Os conflitos levados a cabo no interior
da produção, acompanhados pela sofisticação de viçosas cantoras líricas, e pela
presença de Burt Lancaster no lugar de narrador participativo, aquele a quem
cabe levantar as lendas, favorecem o clima geral de opera buffa com momentos de
vigoroso cinismo historiográfico.
No elenco aparecem ainda Shelley Duvall, Geraldine
Chaplin e Harvey Keitel, garantindo ao filme uma harmonia que acabou por lhe valer
um Urso de Ouro no Festival Internacional de Berlim. Não admira que o
prémio tenha vindo de um festival europeu, já que, se é exagerado considerar
anti-americano um filme destes, é justo olhar para Buffallo Bill e os Índios
como um exercício crítico acerca da função mistificadora da indústria do
entretenimento. Exercício de tal espécie, levado a cabo por um cineasta
norte-americano, tendo por objecto uma das figuras iconográficas da América do Norte
no contexto específico de um género cinematográfico tipicamente americano, só
poderia ser do agrado de uma crítica não instalada ou absorvida pelos
mecanismos publicitários da grande fábrica hollywoodesca.
A lição de história de Sitting Bull aqui encenada pode
ser vista como um relevante passo no contexto de uma reflexão profunda acerca
da América. Parte considerável da carreira de Robert Altman aponta nesse
sentido, tantas vezes com um apuramento satírico e autocrítico raros na
Hollywood mais conservadora e conformada. A singular sobreposição de falas que deu
fama aos seus filmes encontra aqui um cenário privilegiado. Note-se
como o silêncio sepulcral da personagem de Sitting Bull é o contraponto ideal
numa lição de história onde a cacofonia generalizada prejudica a lucidez
individual. Deve ser a isto que damos o nome de inteligência, sem moralismo nem sentimentalismo a prejudicar a retórica do cinema.
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