Talvez fosse avisado deixar a biografia fora disto, não
se desse o caso de em nota introdutória ao seu mais recente livro, de título
Lançamento (Douda Correria, Outubro de 2016), Margarida Vale de Gato (n. 1973) induzir
entre os poemas coligidos e a vida vivida uma interdependência impossível de
ignorar. Tal interdependência sucede em dois sentidos paralelos, o da perda,
aliada a mortes inesperadas, e o de quem permanece entre os vivos. «Eu quero
fazer sentido da perda», declara a autora como quem manifesta um programa
poético. Para tal, cada um dos poemas reunidos convoca um nome próprio.
Independentemente das associações que a uns e a outros possam ser permitidas,
em apenas um dos poemas o nome próprio se faz acompanhar do apelido que determina
a pessoa a quem os versos claramente se dirigem: Rui Costa, cabeçudo,
por tudo. Trata-se de uma excepção, pois em mais nenhum poema se estabelece uma
interlocução do mesmo tipo. Ainda que a espaços possamos encontrar elos objectivos entre sujeito poético e receptor (no poema Alice, por exemplo, é evidente
que o discurso se dirige à filha da autora), esta objectividade não é de todo
relevante para a compreensão do poema. De resto, há nomes que se repetem —
Luís (4X), Miguel, Rui e António (3X), Pedro (2X) —, um que surge no plural — Teresas —,
outros que aparecem acompanhados: Jaime e José; António, Henrique, Patrícia;
Flarimundo e Manuela.
Seguido de uma ensaio onde a autora achou por bem explanar
os motivos por detrás de tal arrumação, ficamos a saber que: «Estes nomes que
eu amo não são, de todo, recados, nem sequer destinatários. Quando muito
transferências, estafetas e não arautos. Agrada-me por enquanto que se
mantenham como sentinelas, resguardando a interpretação apressada. Interessa-me
o confessional sonegado, o encontro entre escrita e biografia no emocionante efémero,
que se resolve e fixa, quando lhe assiste a arte, sem causas nem razão». Como
compreender este encontro entre escrita e biografia senão deixando a biografia
fora disto? Ao leitor, pouco importará a biografia sonegada no poema. Esta é já
a expressão de uma outra coisa que não exactamente a vida. O que o leitor
encontrará é uma paisagem, nesse sentido que outrora lhe foi dado por quem
descobriu haver entre a representação e o objecto representado uma cisão inultrapassável.
Talvez caiba ao poeta, assim como a qualquer artista, fazer da sua obra uma
ponte entre a experiência do vivido e uma possível transfiguração dessa
experiência, conquanto aceitemos não haver obra onde a discursividade poética aflua
invariavelmente para algo que por detrás da realidade se esconde. Que algo é
esse? Podemos chamar-lhe ideia, podemos chamar-lhe amor, podemos chamar-lhe
paixão, podemos chamar-lhe afecto, podemos chamar-lhe sentimento, podemos
chamar-lhe respiração. Podemos chamar-lhe imensas coisas. No fundo, é sempre um
ponto de encontro entre a percepção daquele que se expressa e a percepção
daquele que pela interpretação procura entender o que foi expressado.
Neste
sentido, os nomes próprios atribuídos aos poemas não diluem a função contextualizadora
de um título. Antes reivindicam para os poemas uma aproximação à vida que pode
ser entendida, em suma, como um dos propósitos da escrita. Podíamos confrontar
esta posição com a de um poeta como Ruy Belo, para quem o acto de escrever era
uma espécie de suicídio repercutido até à palavra derradeira. «Ao escrever,
mato-me e mato», escrevia. Resta saber se neste gesto não está implícita uma
revogação da morte, na medida em que ao matar-se e matar aquele que escreve
transfere para o texto os dados da vida. É precisamente de transferências que
fala Margarida Vale de Gato, propondo para a poesia «um lugar grato onde um
amigo ao menos nos habita». Realiza-o insistindo numa sintaxe complexa, repleta
de inversões, e na desconstrução de formas fixas já testada nos livros
anteriores, acrescentando agora uma inusitada narratividade em alguns poemas,
sendo que em dois deles a quebra de verso cede à prosa e o discurso assume uma
configuração sociopolítica que não é de todo a mais recorrente nesta poesia.
Ainda
que os temas sejam diversos de poema para poema, além do sentimento de perda
que motiva o livro há uma outra temática que parece transversal. Refiro-me à
inclinação para uma paisagem campestre desde logo introduzida nos primeiros
versos: «Planto jasmim semeio bagas carrego terra / numa pá desde a ribeira ao
quintal vingam / coisas que vivem». Sem que se oponha aos retratos capturados
na agitação da cidade, este olhar mais estendido sobre as coisas da terra e,
por vezes, penetrador de uma paisagem rural, não idealiza a Natureza nem sequer
aprova o campo enquanto suposto paraíso perdido a que se regressa por
nostalgia: «Para a ceifa não fui feita minha chorona mãe, / não te rales se
souberes de mim presa ou a monte / com mau nome traficada, a capital é um pulo
/ eu não quero estar mal parada». Ao invés, o rural parece também aqui ser
sinónimo de uma perda que regressos momentâneos, sejam físicos ou através da
memória, não logram reparar. Em suma, tanto em sintonia com o homem só de
Emerson como com o artista solitário de Rilke, «A poeta escreve sempre na
prisão». A liberdade não advém do lugar como consequência deste nem do
exercício mais ou menos lúdico de uma arte, ela constrói-se no corpo, pelo
corpo, em paradoxal comunhão com o outro que connosco partilha espaço e
comunica. Assim o entendemos ao ler num dos mais belos poemas deste livro versos que nos capturam por neles encontrarmos o essencial:
«Nenhuma parte do corpo, porém, como a cabeça / segura tantos orifícios
animais, por mais que a beleza / seja da nossa responsabilidade como a limpeza
e a luz / da pele, como a limpeza e a luz do traço no papel / morreríamos
incomunicáveis sem os nossos buracos. / O raro alimento, o faro, o bafo, o som,
o beijo / necessitam feias fendas, alargados poros».
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