quarta-feira, 16 de novembro de 2016

LANÇAMENTO

Talvez fosse avisado deixar a biografia fora disto, não se desse o caso de em nota introdutória ao seu mais recente livro, de título Lançamento (Douda Correria, Outubro de 2016), Margarida Vale de Gato (n. 1973) induzir entre os poemas coligidos e a vida vivida uma interdependência impossível de ignorar. Tal interdependência sucede em dois sentidos paralelos, o da perda, aliada a mortes inesperadas, e o de quem permanece entre os vivos. «Eu quero fazer sentido da perda», declara a autora como quem manifesta um programa poético. Para tal, cada um dos poemas reunidos convoca um nome próprio. Independentemente das associações que a uns e a outros possam ser permitidas, em apenas um dos poemas o nome próprio se faz acompanhar do apelido que determina a pessoa a quem os versos claramente se dirigem: Rui Costa, cabeçudo, por tudo. Trata-se de uma excepção, pois em mais nenhum poema se estabelece uma interlocução do mesmo tipo. Ainda que a espaços possamos encontrar elos objectivos entre sujeito poético e receptor (no poema Alice, por exemplo, é evidente que o discurso se dirige à filha da autora), esta objectividade não é de todo relevante para a compreensão do poema. De resto, há nomes que se repetem — Luís (4X), Miguel, Rui e António (3X), Pedro (2X) —, um que surge no plural — Teresas —, outros que aparecem acompanhados: Jaime e José; António, Henrique, Patrícia; Flarimundo e Manuela
Seguido de uma ensaio onde a autora achou por bem explanar os motivos por detrás de tal arrumação, ficamos a saber que: «Estes nomes que eu amo não são, de todo, recados, nem sequer destinatários. Quando muito transferências, estafetas e não arautos. Agrada-me por enquanto que se mantenham como sentinelas, resguardando a interpretação apressada. Interessa-me o confessional sonegado, o encontro entre escrita e biografia no emocionante efémero, que se resolve e fixa, quando lhe assiste a arte, sem causas nem razão». Como compreender este encontro entre escrita e biografia senão deixando a biografia fora disto? Ao leitor, pouco importará a biografia sonegada no poema. Esta é já a expressão de uma outra coisa que não exactamente a vida. O que o leitor encontrará é uma paisagem, nesse sentido que outrora lhe foi dado por quem descobriu haver entre a representação e o objecto representado uma cisão inultrapassável. Talvez caiba ao poeta, assim como a qualquer artista, fazer da sua obra uma ponte entre a experiência do vivido e uma possível transfiguração dessa experiência, conquanto aceitemos não haver obra onde a discursividade poética aflua invariavelmente para algo que por detrás da realidade se esconde. Que algo é esse? Podemos chamar-lhe ideia, podemos chamar-lhe amor, podemos chamar-lhe paixão, podemos chamar-lhe afecto, podemos chamar-lhe sentimento, podemos chamar-lhe respiração. Podemos chamar-lhe imensas coisas. No fundo, é sempre um ponto de encontro entre a percepção daquele que se expressa e a percepção daquele que pela interpretação procura entender o que foi expressado. 
Neste sentido, os nomes próprios atribuídos aos poemas não diluem a função contextualizadora de um título. Antes reivindicam para os poemas uma aproximação à vida que pode ser entendida, em suma, como um dos propósitos da escrita. Podíamos confrontar esta posição com a de um poeta como Ruy Belo, para quem o acto de escrever era uma espécie de suicídio repercutido até à palavra derradeira. «Ao escrever, mato-me e mato», escrevia. Resta saber se neste gesto não está implícita uma revogação da morte, na medida em que ao matar-se e matar aquele que escreve transfere para o texto os dados da vida. É precisamente de transferências que fala Margarida Vale de Gato, propondo para a poesia «um lugar grato onde um amigo ao menos nos habita». Realiza-o insistindo numa sintaxe complexa, repleta de inversões, e na desconstrução de formas fixas já testada nos livros anteriores, acrescentando agora uma inusitada narratividade em alguns poemas, sendo que em dois deles a quebra de verso cede à prosa e o discurso assume uma configuração sociopolítica que não é de todo a mais recorrente nesta poesia. 
Ainda que os temas sejam diversos de poema para poema, além do sentimento de perda que motiva o livro há uma outra temática que parece transversal. Refiro-me à inclinação para uma paisagem campestre desde logo introduzida nos primeiros versos: «Planto jasmim semeio bagas carrego terra / numa pá desde a ribeira ao quintal vingam / coisas que vivem». Sem que se oponha aos retratos capturados na agitação da cidade, este olhar mais estendido sobre as coisas da terra e, por vezes, penetrador de uma paisagem rural, não idealiza a Natureza nem sequer aprova o campo enquanto suposto paraíso perdido a que se regressa por nostalgia: «Para a ceifa não fui feita minha chorona mãe, / não te rales se souberes de mim presa ou a monte / com mau nome traficada, a capital é um pulo / eu não quero estar mal parada». Ao invés, o rural parece também aqui ser sinónimo de uma perda que regressos momentâneos, sejam físicos ou através da memória, não logram reparar. Em suma, tanto em sintonia com o homem só de Emerson como com o artista solitário de Rilke, «A poeta escreve sempre na prisão». A liberdade não advém do lugar como consequência deste nem do exercício mais ou menos lúdico de uma arte, ela constrói-se no corpo, pelo corpo, em paradoxal comunhão com o outro que connosco partilha espaço e comunica. Assim o entendemos ao ler num dos mais belos poemas deste livro versos que nos capturam por neles encontrarmos o essencial: «Nenhuma parte do corpo, porém, como a cabeça / segura tantos orifícios animais, por mais que a beleza / seja da nossa responsabilidade como a limpeza e a luz / da pele, como a limpeza e a luz do traço no papel / morreríamos incomunicáveis sem os nossos buracos. / O raro alimento, o faro, o bafo, o som, o beijo / necessitam feias fendas, alargados poros».

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