quinta-feira, 17 de novembro de 2016

UMBIGO

Na precipitação preguiçosa com que tudo é feito e escrito, literatura ou crítica, raríssimos são os que têm, ao mesmo tempo, a culta humildade de conhecerem as suas limitações, e a autoridade para falarem de alguma coisa que não seja a sua raivinha semanal. Pelo que não há alternativa para um honrado escritor português senão partilhar alguns louros com a canalha, e receber dela o esterco que ela lhe reserva. Isto não sou eu quem o diz — curiosamente, é toda a gente, quando fala dos "outros", por certo achando que são menos como os "outros", exorcismando-se. Não haverá no mundo vida literária em que tanta gente se compraza deliciadamente, em privado, com julgar pulhas os outros. Em público, é diferente. Pois saibam V. Ex.ª que, enquanto não tiverem a coragem de se conhecerem como tal, continuarão a sê-lo e a envenenar uma juventude que não tem outro remédio senão criar-se à vossa imagem e semelhança. Como princípio de cura, leiam o Poema em Linha Recta de Álvaro de Campos. E deixem de ler-se uns aos outros, que não vale a pena. Há décadas passadas, foi moda atacar José Régio por, dizia-se, contemplar o próprio umbigo. O mais que pode dizer-se, hoje, é que mais vale o próprio do que o alheio. Porque, se uma pessoa começa no umbigo, é um perigo onde acaba.

Jorge de Sena, in Poesia e Cultura, excerto do ensaio A poesia e a vida (1972/73), Edições Caixotim, Outubro de 2005, pp. 107-108.

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