Tem piada, o modo como as pessoas reagem à morte de um homem.
Lembrava-me ontem a Ana da repulsa que partilhámos ao observar as imagens de
Muammar al-Gaddafi ou Saddam Hussein a serem humilhados e executados. Nenhuma
simpatia pelas personagens fundamentava tal repulsa, apenas respeito pela
pessoa humana. Esse respeito paradoxal que nos obriga a salvaguardar a
humanidade da selvajaria, mesmo quando estão em causa seres humanos que
atentaram contra outros seres humanos.
O exemplo de Fidel é diferente, muito
diferente. As pessoas que festejam a sua morte têm as suas razões, tal como
aqueles que ainda hoje celebram o aniversário de Salazar. Tenho a certeza que
há-de haver quem festejará a morte de Mário Soares, como vi pessoas festejarem a
morte de Cunhal. Há gente para tudo, diz a minha mãezinha amiúde e
eu repito.
Mas para mim Fidel é mesmo um herói, sem qualquer espécie de dúvidas
e apesar de vários gestos que podemos criticar na sua acção ao longo dos anos.
As grandes figuras históricas são sempre ambivalentes. Constato porém que para
as pessoas que hoje celebram a morte de Fidel, chamando-lhe ditador, como se
nessa palavra estivesse contido o significado final do mal (Bush filho, por
certo, não foi um ditador, e no entanto…), Cuba não existia antes da revolução.
Saberão as pessoas o que era Cuba antes de Fidel e de Che? Saberão o que era a
Cuba de Fulgencio Batista? Talvez não fosse esperar muito que investigassem um pouco, procurando pelo
menos perceber que a História não é a preto e branco. Está tingida de inúmeras
nuances.
Libertada Cuba de Batista, saberão de facto as pessoas o que foi o regime
implantado por Fidel e seus camaradas? Como se relacionou com o mundo do seu tempo? Como
conseguiu sobreviver à reacção do neo-colonialismo norte-americano? Saberão das
privações a que ficou obrigada toda uma nação depois de um embargo que fez o
que fazem sempre as tão elogiáveis "democracias" do mundo capitalista? Isto é, isolar,
condicionar, manipular, obrigar os outros a serem como elas são em proveito não
de si próprias, mas dos interesses de terceiros.
Leia-se este livro e tente-se
perceber um pouco para lá dos lugares-comuns que tantas vezes limitam o
pensamento. Muitas pessoas estarão convencidas de que a democracia,
por si só, é um dado adquirido, mesmo quando permite que energúmenos se
perpetuem no poder. E que democracias? Votar de quatro em quatro anos? Esperar
que esta gente esclarecida possa em consciência escolher os seus líderes? Fará
sentido a democracia se não for acompanhada de educação e de cultura? De uma
imprensa de facto livre que não esteja à mercê dos interesses de quem a financia?
Mais ou menos repressivos, os sistemas encontram sempre maneira de reprimir
quem se lhes oponha. Em última instância, somos todos vítimas das black fridays
que, tal como nos tempos do pão e do circo, falseiam a negra realidade de um
mundo profundamente desigual, assimétrico, onde uns poucos obesos consomem
desmesuradamente os recursos do mundo, condenando à miséria perpétua a maioria que nele
sobrevive em condições democraticamente aceitáveis. Mas as boas consciências do capitalismo selvagem podem suspender a democracia quando bem entenderem.
Grato, pois, a Fidel, e a
outros como ele, por terem colocado as suas vidas ao serviço de um mundo mais
equilibrado, contra injustiças que, está visto e provado, não são eleições de
quatro em quatro anos, com percentagens absurdas de abstencionistas, que as vão
resolver. O problema é mais profundo e não tem uma única face. Tem várias. Daí que seja tão subjectivo falarmos hoje de "imprensa livre" (qual?) ou de democracia (quais?), apontando o dedo àqueles cuja história foi e é de resistência, resiliência e sobrevivência a males bem maiores do que não haver eleições de quatro em quatro anos ou uma imprensa tão livre e esclarecedora como, por certo, será a nossa (para não irmos mais longe).
A talho de foice, desejo apenas que todos os portugueses que este Natal façam compras numa Zara, a título de exemplo, se sintam imensamente gratos pela democracia que vigora no Bangladesh.
23 comentários:
Queria só "tirar-lhe o chapéu" por este texto, eu que sucumbi, que é como quem diz acomodei-me, à indiferença. Ainda bem que outros guardam desperta a consciência e investem ainda na Palavra. Paradoxalmente à minha praxis, acredito que vale a pena. Obrigada.
Afirmar que vivemos na decadência - mesmo considerando a tecnologia - é pouco e não está próximo da verdade. Inventou-se há muitos anos, até - soube-o há pouco - o "conceito" de «pós-verdade» como se tal coisa pudesse existir para justificar a consciência da mentira. Onde vivemos mesmo é na miséria moral, na selva mas sem o esplendor dela nem a regeneração da sobrevivência que ela nos exige, e a evidência disto é as pessoas "verem" e julgarem a História da perspectiva do seu conforto, da faca do seu dinheiro, daquilo que são por exclusão daquilo que os outros não podem ser, e não da perspectiva do seu conhecimento acima das circunstâncias. Hoje, come-se a miséria no simulacro de se estar longe dela, mas não é assim. A miséria moral está composta e bem luzida em cima da mesa. Suponho que a maior parte das pessoas, se deitasse as mãos a estudar a História, teria vergonha de si própria. Mas se não têm vergonha daquilo que, sem crivo algum, partilham nas redes sociais, não me parece que a História - hoje amordaçada pelos mercenários que combatem a erudição porque são incapazes de compreender a sua importância metodológica e portanto de a alcançarem - pudesse ter alguma serventia intelectual e moral.
Obrigado a ambos pelos comentários.
Tive oportunidade de ver ao vivo a cuba livre de Fidel. É indefensável.
E a outra Cuba, viste?
E já agora, imagina Portugal debaixo de um embargo do seu vizinho mais próximo, tipo Espanha. Consegues imaginar? Achas que seria defensável?
A Europa livre do mediterrâneo transformado em cemitério, será defensável?
E a América de Abu Ghraib e quejandos?
Há dias, num programa de televisão, alguém dizia que já não há pachorra para a causa palestiniana. A expressão era "temos mais que fazer"! Ao argumento acrescentavam-se preocupações mais prementes com o ISIS e afins. Temos mais que fazer, dizia a criatura.
Que diria ela face aos últimos dados acerca da violência exercida sobre mulheres em Portugal. Temos mais que fazer?
Em suma: o que têm umas coisas que ver com as outras? Tudo.
A Cuba que tu vista não será a Cuba que a Lia viu. Os meus pais, longe, muito longe, de serem comunistas, também não viram a que tu viste. Vieram encantados. Eu nunca estive lá. Mas também nunca estive na lua. Mas a ter que defender alguma coisa, prefiro defender a capacidade de resistência de Cuba à América que elege Trump ou à Europa indiferente à mortandade no mediterrâneo, a mesma que colonizou ao longo de séculos continentes inteiros entretanto transformados num caos que serve apenas as indústrias de minério, petróleo, armamento, mão de obra barata, prostituição, etc.........
Tretas. Quando leio: "Mas para mim Fidel é mesmo um herói, sem qualquer espécie de dúvidas e apesar de vários gestos que podemos criticar na sua acção ao longo dos anos.", só me resta o mais profundo dos nojos. O nojo que dedico a todos os heróis cobardes que arrotam estas barbaridades no conforto dos seus lares. A melhor prova da culpa que escondem está no recurso persistente à crítica de outros pecados, como se as falhas de outras latitudes nos suscitem condescendência para com o execrável ditador que morreu ontem. Não! Fidel mandou gente para a prisão porque o regime que defendia não resistia ao clamor do povo, não resistia ao escrutínio livre, não resistia sem a tortura ou o assassinato. Perante isto, é obsceno vir falar de fulgêncios ou trumps. Era o que faltava que precisássemos de merda para justificar a merda. Isso tem um nome, meu caro, e um nome feio.
Presumo que o tom utilizado pelo Anónimo para se opor a algo de que discorda também tenha um nome, mas não sei bem qual é. Talvez possamos discordar uns dos outros, vá lá, democraticamente. O que lhe mete nojo a si não tem de ser exactamente o mesmo que me enoja a mim. Não pretendo justificar o mal com a existência de males maiores, embora recuse perspectivas unilaterais, simplistas e redutoras da realidade. Diz: "Fidel mandou gente para a prisão". É um facto. Mas o meu amigo ou amiga conhece algum sistema no mundo que o não faça. Repare que não ilibo o sistema de Castro dos seus abusos, mas não posso deixar de sublinhar com espanto que precisamente em Cuba, para por ali nos ficarmos, uma democracia muito respeitável como a norte-americana mantém activa uma prisão chamada Guantánamo com imensos reclusos sem direito a julgamento. Será legítimo sentir nojo desse facto? Parece-me sempre mais obsceno silenciar o mal de uns com o mal de outros do que acusar todos os males. Você nunca me viu nem verá a defender, por exemplo, a execução de quem quer que seja, assim como nunca me verá a defender a perseguição a intelectuais, artistas, etc., como se estes fossem criminosos por se oporem a um regime com o qual não concordam. Agora também jamais me ouvirá dizer que esses abusos têm exclusivos históricos, pois a verdade é que não têm.
E já agora, como é que você sabe que o meu lar é confortável?
O que tu chamas capacidade de resistência de cuba é a obstinação de ditadores. O povo não tem outra alternativa a não ser resistir. Quando pode, arrisca a vida a tentar fugir daquela ilha. A cuba que eu vi é a dos presos políticos denunciados pela amnistia internacional (salvo erro 8600). É a cuba em que a médica que me assistiu no hotel ganhava 20 dólares por mês e passava tanta fome que nos pediu comida. É a cuba do professor universitário de matemática que passeia turistas as escondidas para alimentar os filhos. Da polícia corrupta que em menos de 100 quilómetros o mandou parar duas vezes e a quem subornou por estar a transportar turistas. É a cuba em que o acesso a partes da ilha está vedado aos cubanos (para não perturbar os turistas com a verdade); é a cuba pejada de prostitutas que se vendem por bagatelas cosméticas; a cuba onde não se pode comer carne de vaca, marisco, ter internet ou tv cabo em casa, expressar opiniões contra o governo; onde impera o medo e a revolta. A cuba da Havana a cair aos pedaços, do cheiro nauseabundo e sem um resto de cultura digna desse nome. Do povo a pedir qualquer coisa na rua. Qualquer coisa porque não têm nada. Foi essa a cuba que me entrou pelos olhos dentro quando só fui lá para ver o mar e o sol que eu não sou dada a cenas políticas e não tenho nada contra o comunismo. (Já nem falo na inexistência de medicamentos, nos insuportáveis níveis de poluição de Havana, nos monitores apagados no aeroporto em que os funcionários fingiam que aquilo estava ligado a um computador, nas horas em que fiquei retida por ter um telemóvel que eles nunca tinham visto e que meteram na cabeça que era sei lá o qué, na folha de papel higiênico que te dão na casa de banho do aeroporto - uma por pessoa- na subexploracao das pescas porque aquela malta quando se apanha num barco foge, etc).
Em suma, poderás refutar tudo isto atribuindo a responsabilidade ao embargo (que é também e sobretudo responsabilidade dos ditadores cubanos) mas há uma coisa que não podes fazer: é deixar de retirar ilações do facto de aquela malta fugir quando consegue. Que resistência é essa? Se é assim tão bom, de que fogem as pessoas que tu dizes que resistem?
Posso garantir-te que já estive em países muito pobres, como São Tomé, e que nunca vi miséria que me impressionasse tanto como a de cuba. A miséria das pessoas cultas, daquelas que sabem que há outras coisas, a miséria consciente, é aquela que mais me impressiona.
Tenho pena, mas não posso responder de imediato. Isto terá de ir por partes. Há aqui matéria para muita reflexão.
Só não consigo discutir isto: «embargo (que é também e sobretudo responsabilidade dos ditadores cubanos)». Eh pá, isto é o mesmo que dizer que o Holocausto foi culpa dos judeus. Ainda ontem ouvia o Nuno Rogeiro falar dos primeiros tempos da independência cubana e das boas relações com os EUA, que se deterioraram quando os americanos tentaram contrariar a revolução com a chamada Invasão da Baía dos Porcos (https://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%A3o_da_Ba%C3%ADa_dos_Porcos). Isto é história, bolas. Tentar negar isto é revisionismo, coisa de que eu gosto tanto como tu de vegetarianos.
1.
«O que tu chamas capacidade de resistência de cuba é a obstinação de ditadores. O povo não tem outra alternativa a não ser resistir. Quando pode, arrisca a vida a tentar fugir daquela ilha.»
Parece-me haver uma ligeira contradição na inexistência de alternativas onde duas hipóteses se afirmam. Mas fiquemo-nos pelo essencial: aquilo a que eu chamo resistência é obstinação de ditadores. Isto é válido só para Cuba ou para todos os exemplos de resistência que aprendemos a saudar pelo mundo fora? Os indianos que se colocaram ao lado de Mahatma Gandhi, não foram resistentes? Tinham alternativa? E os timorenses que apoiaram Xanana? E os sul-africanos de Mandela? Qual a alternativa dos oprimidos senão apoiar quem lhes abre a porta da esperança oferecendo um horizonte melhor? Passa-te pela cabeça que Fidel não tenha tido apoiantes? Acreditas mesmo que os cubanos, na sua generalidade, não aderiram à revolução e não a sentem como uma vitória sua sobre o colonialismo que sofriam anteriormente? Parece-me que estás a passar um atestado de "panhonhice" a todo um povo, o que seria razoável falando dos portugueses que durante Salazar se mantiveram com a cabeça entre as orelhas ou os outras que ainda hoje não têm outra alternativa senão emigrar de um país onde não há lugar para eles. Colocando a questão de Cuba em perspectiva, Fidel foi um lidere obstinado. Sim. E ainda bem. Não creio que, ao contrário de outros (veja-se Angola, por exemplo), se tenha servido da adesão popular para enriquecimento próprio ou para se afirmar por um qualquer capricho que não fosse o de oferecer ao seu povo uma vida melhor do que aquela que tinha antes da revolução. Cuba era um offshore de gangsters antes da Revolução - disse o Nuno Rogeiro, a quem não podemos apontar qualquer tipo de simpatia pela causa castrista. Talvez o povo não devesse ter saudado a chegada dos barbudos a Havana. Só não percebo é por que desde o princípio tanto desse povo ostracizado esteve ao lado de Fidel. As imagens dele a ser saudado quando saiu da prisão ainda antes da revolução são sintomáticas de uma simpatia que conquistou junto das classes oprimidas. Ou será que andava tudo drogado? Quanto aos exilados, minha querida, bem sei da perseguição a intelectuais e a opositores do regime. Repudio-a, como é óbvio. Mas em todo o mundo conheço exilados. Nas democracias, como a nossa, chamam-se emigrantes. E olha para a Europa de hoje e vê como tem tratado os refugiados. Repudio isso ainda mais. Um mal não justifica o outro, pois não. Mas será legítimos tecer juízos de valor sobre factos históricos sem termo de comparação?
As minhas desculpas pelos lapsos ortográficos, mas vou escrevendo nos intervalos à pressa, em fuga de um Natal em marcha, consumista e opressor.
2.
«A cuba que eu vi...»
Repara como a Cuba que tu viste contrasta tanto com a Cuba que a Lia viu e descreve no post abaixo, contrastando também com a Cuba que vários familiares, amigos, conhecidos meus viram, todos eles longe de serem ou de sequer simpatizarem com o comunismo. Não posso, no entanto, sem nunca ter visto Cuba, dizer que acho que não viste nada de muito especial. Viste presos políticos, o que é, de facto, algo mau de se ver. Não sei se estiveste em Guantánamo. Diz que os dessa prisão são mesmo muito mal tratados. Nada que se compare com o que aqui é descrito: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160322_cuba_presos_tg . Embora, como é óbvio, eu me oponha a todas as detenções arbitrárias. Até à de Sócrates. Viste uma médica que ganhava «20 dólares por mês e passava tanta fome que nos pediu comida». Tiveste direito a médica em pleno Hotel, o que já não é mau. Não percebo é como é que alguém com tanta fome teve capacidade para te assistir num hotel. Viste um «professor universitário de matemática que passeia turistas as escondidas para alimentar os filhos». Olha, comigo trabalham uma licenciada em Biologia pela Universidade de Aveiro, desempregada durante mais de 10 anos, a viver às custas dos pais, trabalha uma licenciada em Radiologia, uma licenciada em Artes. Tenho pilhas de CVs engavetados de gente com licenciaturas, mestrados e até um com doutoramento. Há tempos, no Campo das Cebolas, a minha mulher estava deliciada com a arquitectura de um edifício, mas eu não conseguia tirar os olhos da fila interminável para a sopa dos pobres. Enfim, cada um vê o que quer. A miséria não tem exclusivos, infelizmente. Polícia corrupta? Nem comento. Zonas turísticas vedadas? Já foste à Côte d'Azur? Prostituição? Sugiro-te o percurso da EN1 entre Leiria e Coimbra, ou uma volta pelo Técnico em Lisboa depois da meia-noite, para não falar das montras de Amesterdão, por certo pejadas de cubanas no exílio, ou em países como Tailândia e Brasil onde o mercado de jovens virgens ao serviço de empreendedores europeus vai prosperando. O resto da descrição, remeteu-me para cidades marroquinas onde já estive ou até certas zonas no Egipto por onde em tempos passei. Certos imagens também me fizeram lembrar dos tempos em que fui professor no Alto da Damaia. Com uma diferença: nenhum deste países tinha sido ostracizado pela maior potência económica do mundo, com um embargo que tu não queres ver citado como desculpa para uma miséria que não pode ser dissociada desse mesmo embargo.
3.
«Que resistência é essa? Se é assim tão bom, de que fogem as pessoas que tu dizes que resistem?»
Minha cara, quem disse que era bom? Dói, fere, mata, corrói, resistir, lutar por aquilo em que se acredita nunca é confortável. Cada um resiste como pode e quer, colocando a sua vontade e determinação ao serviço do que bem entende. De si próprio, dos outros, de um ideal, da família, dos amigos, da justiça, da arte... As pessoas fogem sempre do mesmo: do sofrimento. As causas do sofrimento são diversas. De que fogem os refugiados? De que fogem os portugueses ainda hoje, um povo velho cuja história está toda ela marcada pela fuga? As pessoas fogem do sofrimento em busca da vida que julgam sempre melhor, mesmo quando se afundam no Mediterrâneo ou embatem nos muros da Europa livre, democrática, solidária. Ficar e lutar por aquilo em que se acredita, e não são poucos os que ficaram, presumo, tu viste muitos, com um vizinho logo ali ao lado que é uma espécie de Golias face a um pequeno David, não há-de ser de todo confortável. Mas é como diz o outro: pagamos um preço, mas não nos importamos. De resto, não tenho uma visão maniqueísta destas coisas. A História é complexa e não está fechada. Posso até confessar-te que sou um comunista tardio, a minha adesão surge na sequência de uma reflexão, não é de família, longe disso, até nisso estou completamente isolado, como uma ilha onde seria muito mais confortável fugir de mim próprio. O comunismo para mim é um horizonte. A gente luta na direcção desse horizonte. Faz-se dia a dia, em busca de uma sociedade mais justa e equilibrada, menos assimétrica. Contra os poderes colossais que a a essa luta se opõem por verem mais vantagens em sociedades desequilibradas. Que, como deves imaginar, são diversos e bem mais nefastos do que algum dia terá sido a história da revolução cubana. Basta olhar para o mundo para o constatar, infelizmente.
Revisionismo é ignorar que Fidel proibiu os cubanos de saírem de cuba; fez milhares de presos políticos; impediu a liberdade de expressão e manteve a ilha no obscurantismo cultural e económico. Defender ditadores, quando se vive em sociedades livres é um acto de fé. Podes sempre encontrar milhares de justificações se estiveres disposto a justificar.
Quanto à pretensa alegria idílica que alguns conseguiram ver nos cubanos, é ires lá observar com os teus próprios olhos, que eu estou absolutamente convicta que não verias menos ou diferente daquilo que eu própria vi.
Tentando não entrar por por questões predominantemente políticas e ideológicas onde haveria muito para dizer - até posso aceitar sem grande contestação que Fidel Castro possa ter sido um ditador numa determinada acepção da linguística atendendo ao sistema do partido único e a algumas liberdades que estão vedadas aos cidadãos - acontece que há ditaduras e ditaduras e não existe outra forma de o afirmar: A "Ditadura" de Cuba é diferente das outras e não devemos ter medo das palavras...
O que eu vi em Cuba e falei com doutorados e gente do mais simples que possa haver não corresponde de todo ao elencado aqui, com todo o respeito, a nenhum nível. Não encontrei medo nas palavras de ninguém, medo esse que assola as almas de forma dramática nas gentes do mundo considerado mais civilizado e que assume as mais diversas formas, visíveis até nos actos eleitorais largamente ignorados pelo povo.
O que eu encontrei um Cuba foi um país pobre, que vive muito à base do desenrasco que o turismo propicia o que me faz lembrar outros povos ditos mais evoluídos.. e sem a miséria que já encontrei por exemplo em Cabo Verde que nem é dos piores países africanos. Falei e encontrei acima de tudo Gente consciente, verdadeira e bem formada mas realço aqui o "consciente" que é de fundamental importância. Todos dos mais letrados aos mais simples conseguiam com uma extraordinária clareza - em absoluta liberdade e sem constrangimentos - explanar as vantagens e as desvantagens do regime em que vive destacando os pontos fortes (educação, saúde, garantias do essencial para as populações) não esquecendo os pontos fracos (a impossibilidade de terem as coisas que os turistas normalmente carregam consigo quando viajam, a dificuldade em deslocarem-se para fora de cuba, o facto de serem todos predominantemente funcionários-públicos com remunerações baixíssimas).
Concluindo, o que eu encontrei em Cuba foi um país de gente feliz (seja lá o que isso for...) e acima de tudo de gente com consciência social e política, algo que não encontro amiúde no nosso querido portugal só pra dar um pequeno exemplo...
Julgo conhecer razoavelmente a história de Cuba para não embarcar nessa alegria idílica a que te referes. De resto, há textos neste weblog sobre isso. Um sobre uma antologia de poesia cubana, outro sobre um romance de Reinaldo Arenas, outro sobre um filme que retratou a vida de Arenas, um sobre um livro de história intitulado “A Bandeira Vermelha”, etc… Já agora, para não ser acusado de facciosismo, irei citar esse mesmo livro de um historiador insuspeito de qualquer inclinação para a esquerda política. Não ignoro as limitações à liberdade individual, nem a perseguição a intelectuais, nem aquilo a que o RFF chama de sistema de partido único, assim como não ignoro aquilo que, pelos vistos, tu não queres reconhecer. Um país não é uma equação matemática e a História muito menos. Vamos, em síntese, à história tal como a conta David Priestland:
1. Após a independência dos espanhóis, Cuba foi ocupada pelos EUA durante quatro anos. Formalizada a independência, a economia cubana estava quase totalmente integrada na dos EUA. Dependia das exportações de açúcar, sendo que as quotas dependiam “da boa vontade do Congresso americano”, e muitas plantações estavam nas mãos de estrangeiros;
2. Fidel nasce nesta Cuba ocupada, filho de um espanhol com terras alugadas à United Fruit. Quando se envolveu na política, aderiu ao Partido Ortodoxo. O então partido comunista de Cuba era o PSP, no qual Fidel nunca militou. Aliás, as suas posições eram nacionalistas, a sua missão era devolver cuba aos cubanos, sendo que há historiadores que até lhe citam discursos de índole anticomunista.
3. Sendo o ditador Batista uma marioneta nas mãos dos americanos, tornou-se o principal alvo dos nacionalistas. Depois de várias acções falhadas, os “barbudos” da Sierra Maestra conseguiram tomar Havana. Nota muito relevante: «Castro foi encorajado por um enorme apoio popular a pôr termo ao regime de Batista e insistiu que a sua revolução era nacionalista, não comunista». Curioso, não é?
4. Sucede que algumas das principais medidas dos revolucionários chatearam alguns americanos com interesses instalados em Cuba, nomeadamente a reforma agrária que devolvia aos cubanos o que era deles. Os americanos responderam patrocinando um golpe contra-revolucionário a que se deu o nome de “Baía dos Porcos”. Mas responderam também com inúmeros atentados que tinham em vista assassinar Fidel.
5. A Fidel não restou outra alternativa senão aceitar o apoio da URSS, num contexto de Guerra Fria que não pode ser esquecido. Importa ainda referir outro dado muito relevante: «Os cubanos evitaram pois a «luta de classes» sistemática ou a perseguição generalizada da burguesia que se vira em tantos outros regimes comunistas».
6. Conquistas da revolução: educação para todos, com uma campanha de alfabetização icónica; saúde para todos, com um sistema nacional de saúde ainda hoje elogiado por todo o mundo apesar das limitações impostas pelo embargo. Basta consultar a Wikipédia para se reconhecer que nem tudo é mau: «Apesar disso [embargo], o índice de pobreza de Cuba era o sexto menor em 2004 dentre os 102 países em desenvolvimento (de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e Cuba está entre os 83 países do mundo que ostentam um alto Índice de Desenvolvimento Humano (acima de 0,800)».
7. Querer apagar a relevância que o embargo teve nos desenvolvimentos da revolução é não querer entender a história de Cuba e, sobretudo, não querer aceitar um propósito que, à custa de muitas privações, ali foi conquistado: devolver aos cubanos o orgulho de viverem num país independente. Fidel defendia aquilo a que usualmente se chama «marxismo humanista» contra o «marxismo tecnocrático» deixado de herança por Estaline.
Perante isto, a gente pode sempre questionar-se o que seria de Cuba sem o embargo? O que seria de Cuba se os americanos tivessem respeitado o direito dos cubanos a viverem num regime diferente? Podemos mesmo discutir os malefícios/benefícios de regimes díspares face às circunstâncias históricas? Por exemplo, o Iraque estaria pior antes da queda de Saddam? Falava hoje com uma amiga recentemente mudada para Londres e pensava nas contradições da opinião popular. O que essa minha amiga encontrou na Londres actual é uma selvajaria que não pode agradar a nenhum democrata. Que democracias são estas em que vivemos? Bem sei que essa será outra discussão. Ficando por Fidel e pela revolução cubana, o mínimo que acho lógico reconhecer é que, de facto, sem embargo a história seria outra. Talvez devamos começar por condenar essa mesma decisão do embargo.
Sem dúvida. Sem embargo a história seria outra. O único problema que vejo no teu raciocínio é o paradoxo de se dizer o direito dos cubanos de viverem noutro regime e esse regime ser a ditadura (porque dito assim parece que foram os cubanos que escolheram a ditadura e isso está por provar). No mais, até posso concordar contigo. Um país não tem de ter a pretensão de impor a outros o seu regime político e nalguns casos até é indesejável que o faça. O Iraque, como bem referiste, está lá para nos lembrar isso. Devia ser evidente que a democracia não se faz por decreto, nem é solução que funcione em todas as sociedades.
Fora do tópico, eu percebo o drama do comunista. É inequivocamente, do ponto de vista teórico, o sistema social mais justo. Mas como tem aquele pequeno problema de contrariar a natureza humana, no plano na execução prática, foge-lhe o pé para a ditadura...
Quanto ao último parágrafo, e de um ponto de vista estritamente pessoal, remeto para a minha afirmação sobre horizontes. É um horizonte que te aponta o caminho, uma luta constante e interminável, mas solidária e pelo bem comum (o que se distingue da ganância promovida pelo capitalismo). Adiante...
Isso a que chamas ditadura, para quem nada tinha e passou a ter alguma coisa, é um conceito vago, porventura de significado discutível. Há um vídeo curioso do Padura no Youtube. É questionado por jornalistas brasileiros sobre a fome em Cuba. Responde: ninguém morre de fome em Cuba, há pobreza, isso é inegável, pode até haver uma alimentação deficiente para os padrões do mundo ocidental mais desenvolvido, mas ninguém morre de fome. E remata, vejo mais miséria num qualquer quarteirão de São Paulo do que em toda a Cuba. Mais uma vez, o mal não nega o mal. Mas a gente tem que colocar as coisas em perspectiva.
Como diz o historiador que te citei, Fidel teve sempre um enorme apoio popular. Aliás, tu tens visto isso nas imagens que agora chegam de Cuba, por mais que as possam reduzir a propaganda. É tudo propaganda neste mundo em que vivemos. O apoio popular, por si só, também não é garante de nada, bem sei. Mas foi um homem que lutou pelos seus, isso para mim é indiscutível. Não consta que se tenha aproveitado do poder para erigir um império enquanto do alto de uma torre observa o povo morrer à fome. Enfim, basta comparar com Angola (para termos um termo de comparação em regimes relacionados com o comunismo, nem que seja pela teoria simbólica). Para mim, a luta dos barbudos é um exemplo (apesar dos tais exageros com os quais não posso concordar), mas em si mesma está imbuída de princípios válidos.
Fico a imaginar em que o comunismo contraria a "natureza humana" (se é que existe tal coisa e não apenas um conjunto de inclinações sócio-genético-psico-culturais adaptável de acordo com as circunstâncias segundo a comprovada plasticidade do cérebro humano).
Quando dizemos "natureza humana" estamos suscitando dois (ou mais, mas nos atemos aos mais correntes) tipos diferentes, mas semelhantes de determinismos. O determinismo das religiões monoteístas (principalmente judaíco-cristãs), que vêem o ser humano como barro-pecador que necessita ser salvo por Deus, e o cientifismo determinista que vê o ser humano obrigado a seguir um conjunto de predisposições insuperáveis, moldadas pela genética e evolução. Ora, hoje as ciências da mente sabem que não é uma coisa nem outra. Sobre o determinismo das religiões, nem é preciso dizer muito. Não há nada a priori errado com o ser humano. Se ele tiver um conjunto de mitos-histórias a encenar que o coloquem em harmonia consigo próprio, com os semelhantes, com o mundo, ele não deixará de ser passional, mas simplesmente viverá em "relativa harmonia" (ideia bem expressa nos livros de um autor norte-americano chamado Daniel Quinn). Sobre o determinismo cientifista, hoje sabe-se que o cérebro é adaptável. Hábitos engendram sinapses que engendram comportamentos. Novos hábitos engendram novas sinapses que engendram novos comportamentos. Esse é o resumo do que se pode chamar de plasticidade do cérebro humano. Logo, o conjunto de predisposições genéticas, psicológicas, da evolução etc., que se poderia chamar de "natureza humana", pode ser "superado", adapta-se de acordo com as circunstâncias. Adapta-se a qualquer sistema político que se escolha para se organizar em sociedade. Chegamos então à conclusão que um sistema que prefere suscitar a ganância, o consumismo, a competição desmedida entre os indivíduos, a superação máxima de desempenhos, a inveja, a ostentação, o consumo máximo de recursos naturais e por aí vai, ou seja: que desconsidere a plasticidade do cérebro humano (ou, se alguém assim preferir assim chamar: que desconsidere justamente a adaptabilidade da "natureza humana"), não conseguirá "colher bons frutos" dos indivíduos. Por óbvio: hábitos engendram sinapses que engendram comportamentos, pois não?
Não que eu considere o comunismo o sistema ideal ou mais justo, como foi dito. Mas não vejo alternativas mais razoáveis no horizonte (seria o anarquismo imprqatícável?) e nem como o comunismo poderia contrariar a "natureza humana" (essa coisa indefinida que, dados os novos conhecimentos nas áreas biológicas e das ciências da mente, nem poderia mais ser chamada como tal).
E peço desculpas pelos erros ortográficos. Escrevi rapidamente no intervalo entre uma coisa e outra.
Desculpe se pareço persistente e fora do tópico. Mas li sobre um livro recentemente e, como aqui foi citado revisionismo, lembrei-me dele. Confesso que me senti um bocado indignado (agora pretendem colocar o cristianismo num pedestal por ter sido o "pai" da atual democracia - falam dela como se fosse a coisa mais genial de todos os tempos e sinônimo de liberdade). Chama-se "Vitória da Razão", de Rodney Stark. Eis uma pequena sinopse do dito: "Como o Cristianismo, destacando-se de outras religiões monoteístas e dos fundamentos filosóficos da cultura grega, gerou a liberdade, os direitos do homem, a procura sistemática da razão, a paixão pelo progresso e a confiança no futuro. Rebatendo teses marxistas e weberianas, o Autor remete para a Idade Média a génese do Capitalismo, primeiro desenvolvido na organização e função económica dos conventos, depois nos bancos e mercadores das repúblicas italianas, que a levarão para as cidades da Flandres e de Inglaterra e depois para o Novo Mundo, sistema que levará ao milagre económico e ao predomínio do Ocidente."
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