Os especialistas digladiam estatísticas, números,
interpretações. Socorrem-se das revistas e dos jornais estrangeiros que leram e
espantamo-nos com o tanto que lêem. Têm convicções fortíssimas acerca das
causas e, quais pitonisas, prevêem já as consequências. De arrasto,
misturam tudo numa salada de indignações que não aquece nem arrefece. A única
coisa que lhes ferve é o estilo. Duvido que sentissem as mesmas coisas ou
pensassem da mesma maneira se trabalhassem numa Bershka ou na Zara.
O mundo
prossegue a um ritmo vertiginoso na direcção do abismo, com seus Centros
Comerciais gigantescos, inaugurados com pompa e circunstância, a
comercializarem artigos produzidos com mão de obra barata estrangeira para
serem vendidos a mão de compra inflacionada. Natal à porta, febre consumista exacerbada,
chega a ser insultuoso passar-se ao lado destas matérias como se elas não
coubessem nas estatísticas. Mas esperam o quê de uma sociedade assim? Gente
frustrada, com cursos tirados, a trabalhar sábados, domingos e feriados,
serventes da máquina consumista em distribuições horárias a que se dá o nome de
flexibilidade para se disfarçar o desrespeito pelas 40 horas semanais.
Façamos
nós contas da nossa especialidade: um dia tem 24 horas. 8 são para trabalho efectivo. Sobram
16. Retiremos já 2 horas, uma para almoço, outra para jantar. Sobram 14.
Retiremos mais duas horas perdidas em transportes públicos. Sobram 12.
Retiremos uma para a higiene pessoal e o pequeno-almoço. Sobram 10. Retiremos,
pelo menos, 6 horas de sono para um corpo cansado. Sobram 4. Das 24 horas que
um dia tem, sobram 4 ao burguês para cultivar valores fazendo o que bem
entender: desporto, lazer, família, estudo, informação… Ora, alguém julga que
nestas 4 horas um cidadão comum, arrasado pela fadiga quotidiana, vai estar interessado
nas estatísticas dos especialistas? Tem a cabeça cheia de ruído. Dêem-lhe entretenimento, que merece,
dêem-lhe sensacionalismo, que não pesa, dêem-lhe pornografia, que descontrai.
Grosso modo, os efeitos de uma sociedade assim organizada são óbvios:
comodismo, indiferença, letargia. Em dias de folga, se os tiverem, as pessoas
não se dedicarão à reflexão nem à meditação transcendental. Aproveitarão para
se embebedar, fazer churrascos, retirar da vida o parco prazer do que tomam
por dia de liberdade. Desiludam-se os especialistas. O ódio, a raiva, os
medos, que medram no imo de gente assim explorada, não encontram nenhum significado, nem por nenhum processo mágico se identificarão com discursos apaziguadores. Estas
pessoas já só entendem a retórica dos recalcamentos. Mas essa não se mede em
estatísticas, treina-se nos palcos de um espectáculo que é o das audiências.
Numa sociedade toda ela inclinada para o fantasioso da opinião (abram-se os
jornais), da partilha indiscriminada e publicitária da intimidade
(frequentem-se as redes sociais), da promoção do ódio dos fracos aos mais
fracos (sentem-se nos cafés a ouvir o povo), que podemos nós esperar senão a redução da democracia a um degradante reality show? Com a cultura do saber e da
reflexão completamente destruída, e até arcaizada pelos novos pensadores
do imediatismo, não admira que o populismo some e siga. Irá somar ainda mais, movido, como sempre, pela estupidificação das massas. Não há tempo para pensar, o pensamento exige tempo e silêncio, tempo e silêncio são inimigos deste novo mundo, pensar exige ócio, o ócio é um terrorista do passado que a contemporaneidade pós-humana jamais tolerará. Com a complacência e a responsabilidade de todos que não se oponham a isto sem
ceder à ditadura do humorismo e adoptando uma postura de exigência que tenha
por fim mudar o rumo da sociedade, mas mudá-lo de facto.
4 comentários:
Na verdade sobram 2, já que deve dormir-se 8.
Quanto ao resto estás dramaticamente certo.
Preferia não estar, mas acho que estou.
Belíssimo texto, o qual subscreveria na íntegra. No entanto, tenho vindo a questionar-me - e, se me permite, questiono-o - sobre qual será a solução ou soluções.
FPS: educação, cultura, copiar os bons exemplos, que os há, reformar profundamente o mundo do trabalho, valorizando tempos livres, ocupações recreativas, desporto, reaproximar as pessoas do mundo rural cultivando o respeito e a conservação da natureza, etc, etc, etc... Posso tentar escrever um tratado sobre o assunto, mas ia demorar. A mim parece-me óbvio que não sendo o rumo tomado o mais certo, outro rumo haverá em alternativa. E há.
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