Worpswede é uma localidade alemã próxima de Bremen. No
final do séc. XIX, um grupo de jovens pintores, saturados dos ensinamentos da
Academia, estabeleceu no local uma comunidade artística com propósitos
inovadores. No início, integraram-na os pintores Fritz Mackensen (1866-1953),
Hans am Ende (1864-1918) e Otto Modersohn (1865-1943), aos quais se juntaram
mais tarde outros artistas e escritores. O poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) foi um deles,
tendo mesmo chegado a contrair matrimónio nessa cidade com a escultora Clara
Westhoff (1878-1954). Um dos aspectos comum a todos estes artistas é o interesse pela
paisagem. Viagem Singular a Worpswede (Feitoria dos Livros, 2016) é um
dos breves ensaios dedicados por Rilke a esta tendência. Traduzido e precedido
de um ensaio por João Barrento, revela-se uma agradável leitura acerca da relação
do artista com a Natureza. E é precisamente no ensaio introdutório, entre
citações de Georg Simmel, Walter Benjamin e Adorno, que vislumbramos uma forma
curiosa de colocar este problema: Rilke olha para a Natureza com a nostalgia de
algo perdido.
Seria interessante confrontar esta perspectiva, porventura
tipicamente europeia, com a de um transcendentalista como o norte-americano
Ralph Waldo Emerson (1803-1882) no ensaio A Natureza. Uma ponte se estabelece desde logo
entre ambos: a condição solitária do homem entregue à natureza. Mas se em
Emerson esta é ainda um desafio, no texto de Rilke surge na forma de um
sentimento estranho. A comparação serve para reforçarmos a nossa convicção de
que, salvo raríssimas excepções, a cultura europeia tendeu sempre a olhar para os
fenómenos da natureza com distância, tornando-os coisas mentais quando se
aproveita deles enquanto objecto de representação artística. O interesse de
Rilke pela pintura paisagística não deve ser dissociado desta condição: «a
paisagem é para nós algo de estranho, e sentimo-nos terrivelmente sós sob
árvores em flor ou à beira de ribeiras que correm» (33).
Sedentarizado nos complexos arquitectónicos das grandes urbes, o homem europeu perdeu definitivamente o seu contacto com a
natureza, sentindo-a cada vez mais como algo «estranho e violento». O que a
experiência de Worpswede proporcionou foi uma espécie de regresso a essa
infância perdida cuja principal característica era a de um elo, entretanto
quebrado, com a paisagem. Rilke vai longe ao reivindicar para o artista a
viagem que procura reaproximar-nos do mundo natural: «Toda a arte é isso: amor
que se derramou sobre enigmas» (p. 71). Ou seja, toda a arte é um enigma que
permite ao homem nele mergulhado aproximar-se do grande mistério da natureza. Como
validar uma tese destas num mundo em que a criação artística tende a exercer-se
cada vez mais nos espaços confinados de estúdios, fábricas, ateliers? Ocorre-me
a figura de Cesariny, afirmando e reafirmando que nunca escreveu um poema em
casa. Os poemas surgiam-lhe na rua, escrevia-os à mesa de cafés, rodeado de uma
energia vital que as paredes do lar tendem a aniquilar por domesticá-la.
Em
termos estéticos e, por consequência, éticos, temos aqui um problema ainda mais
fundo, porventura cultural. São raríssimos os artistas que hoje se interessam
pela paisagem, abrindo-se a ela com a inocência e o espanto da criança ou aceitando
integrar-se nela com o espírito daquele que dizemos selvagem. Delimitado pelo
Eu, em confronto com o Outro, aquele que cria tende a ser objecto de si
próprio, esvaziando-se em auto-retratos de interesse duvidoso. E se isto é desde
há muito evidente no mundo ocidental, com os seus desvios de ordem sociológica
e política muito localizados, perguntamo-nos como será nesse outro mundo onde a
arte tradicionalmente surgia de uma inversa anulação do eu. Experimentemos
regressar, por exemplo, a múltiplas formas de poesia chegadas do extremo
oriente, que facilmente se tornará compreensível por que razão a rã de Bashô
jamais poderia coaxar num poema de Shakespeare, de Dante ou de Camões.
Concentrados nas coisas do espírito, os nossos artistas raramente se
aperceberam do mundo que existia para lá deles próprios. A este propósito, é
deveras interessante o olhar que Rilke lança sobre os camponeses de Worpswede,
sublinhando, aliás, que com eles nunca se misturavam os artistas. Esta
demarcação de espaços onde cada qual tem o seu papel a desempenhar enviou-me
para o poeta norueguês Hans Børli, de origens humildes, ele próprio madeireiro,
a escrever poemas no seio de uma floresta que soube ao mesmo tempo contemplar e
representar. Era parte integrante de um todo imenso em contínua
transformação, que, para todos os efeitos, não deixa de ser enigmático por dentro dele haver quem se descubra integrado.
4 comentários:
Olha, o transcendentalismo e a Europa, que bom.
É um belo texto, este livrinho.
tentamos domesticar tudo, não é? Gostei muito de ler esta entrada. desinquietou-me.
é.
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