Ainda que ancorado nas
naturais limitações de uma síntese, um livro como A Chama e as Cinzas (Bertrand,
Setembro de 2016) padece, à partida, de um mal sem cura: propõe-se realizar o
que sabe irrealizável sem resvalar para generalizações de objectividade
duvidosa. Uma das primeiras generalizações proposta pelo autor é a de três orientações para a literatura
portuguesa produzida depois da Revolução: a que olha para trás (focada na
História), a que olha para a distância (focada em espaços geográficos
exteriores ao território nacional), a que olha para dentro (focada no Eu
próprio). A pergunta que se impõe é: não foi sempre assim? O que há de novo
nestas três, que poderiam ser quatro ou cinco ou seis, orientações? Nada.
Sempre em todas as épocas houve escritores que olharam para fora tanto quanto
olharam para dentro, ainda que rareiem aqueles que preferem olhar-se ao espelho,
não para se contemplarem, mas para se questionarem sobre o que em si há de
verdadeiramente humano e universal. Talvez seja isto o que falta tanto à
literatura portuguesa como à crítica que a fixa, estando porventura essa lacuna relacionada com uma ausência de espaço crítico verdadeiramente autónomo e independente.
Percebemos que esse espaço crítico
é exíguo quando no texto intitulado Literatura e sociedade: as hipóteses de
Abril, se sugere uma ideia de literatura enquanto «fenómeno das margens», a
qual parece desfasada do espectáculo festivaleiro que tem vindo a aglutinar
toda a indústria livresca (falo de indústria livresca pensando em todos os seus agentes
sem excepção). Curioso notar que estes textos tenham sido motivados pela
nomeação de Portugal como país-tema na Feira do Livro de Frankfurt de 1997, a
qual não deixa de ser feira por ser em Frankfurt e, por consequência, ao ser
feira, não deixa de arrastar consigo as vaidades que o autor do livro em causa
parece desdenhar. Que margens serão essas que uma Feira como a de Frankfurt se
encarrega de promover? Não há margens, o espaço de resistência fica ao lado de
quaisquer panorâmicas de pendor académico, por mais que o academista reclame
para si um lugar de exclusão. Tudo isto se integra, portanto, num espectáculo
em torno do livro que o reduz, por um lado, a objecto de mero entretenimento e,
por outro, a certificado para consagração na sociedade anónima da autoproclamada
intelligentsia.
Igualmente redundante resulta
o capítulo intitulado Leituras da História: facto e ficção no romance. Às teses
explanadas nada há que contrapor, a não ser a constatação de um laconismo resultante
de uma decepcionante colagem ao cânone (Saramago, Lídia Jorge, Jorge de Sena,
Vasco Graça Moura). Não estando em causa a noção mais usual de “romance
histórico”, mas antes a relação do romance com tempos históricos concretos para
a metaforização do presente, é difícil aceitar a inexistência de uma
referência, por mais fugaz que fosse, aos romances de J. Rentes de Carvalho,
precisamente pela consciência da História que revelam ao reflectirem o tempo do
autor tanto a partir de uma observação do país anterior à revolução como de uma
análise crítica do que a revolução trouxe a esse mesmo país. A prosa de José Martins
Garcia mereceria também uma referência, nomeadamente pelo olhar desempoeirado,
céptico e desencantado que oferece sobre a Guerra Colonial e os primeiros anos
de regime democrático. As referências que João Barrento respiga num quarto de século de
literatura portuguesa (1974-2000) acabam por ser mais do mesmo, ou seja, as que
encontramos profusamente divulgadas nas páginas dos suplementos literários, no jornal dito da especialidade, nas revistas literárias onde a crítica se vai
exercendo de um modo oficial e oficioso.
Um capítulo sobre a “literatura
de mulheres” é sempre simpático, ainda que discutível nos termos em que aparece
invariavelmente formulado: é discriminatório falar em literatura feminina,
mas... Ora, é precisamente no mas que reside o problema de tal critério. Em
suma, podemos defender que esta separação não faz sentido. Há boa e má
literatura, independentemente do género do autor que a produz. A optar-se pela divisão,
sobretudo colocando o enfoque numa mudança de paradigma social, por que não um
capítulo dedicado à chamada literatura gay? João Barrento está mais interessado
na «transformação radical (…) da perspectiva narrativa (as mulheres narram a
partir de um olhar mais estático e interiorizado, como que à janela, observando
o mundo a parir [sic] da casa)» (p. 64). Não comento. As obras em evidência são
as de Maria Velho da Costa e da inevitável Maria Gabriela Llansol. No entanto,
Barrento apoia-se nelas para sublinhar características que não são exclusivas
de uma suposta narrativa no feminino. O mesmo acaba por reconhecê-lo, socorrendo-se
de livros tais como Finisterra, de Carlos de Oliveira, e esse «belo e estranho
livro de contos que é A Casa do Fim», de José Riço Direitinho, ou ainda a obra
de Rui Nunes, para sublevar estratégias discursivas que, na opinião do
ensaísta, se revelam com maior acuidade na chamada escrita feminina: polifonia
narrativa, supressão da temporalidade linear, a textualização em primeiro
plano, a contaminação do romance por outros géneros (poema em prosa, ensaio,
fragmento, carta, autobiografia…). Mesmo delimitando a análise à experiência
literária portuguesa ocorrida entre os anos de 1974 e 2000, parece-nos algo
forçado, para não dizer contraproducente, sustentar em tais tendências
discursivas uma literatura que é muito mais fruto do tempo do que de um género.
Mais entusiasmante é o
capítulo dedicado ao conto, com uma abordagem certeira à problemática encerrada
nas formas narrativas breves. Ainda que notemos algumas ausências relevantes no
decurso de uma espécie de genealogia do conto português durante o séc. XX —
José Gomes Ferreira, tão injustamente esquecido, será a ausência mais chocante —, é de
sublinhar o esforço de divulgação de obras não tão consensuais (onde cabem
tanto Pedro Paixão como Jacinto Lucas Pires) a par de outras relegadas, sem que
entendamos porquê, para um segundo plano (Teresa Veiga, Maria Judite de
Carvalho ou o supracitado José Riço Direitinho). Incompreensível, porém, que ao
falar-se de conto português num período como o abarcado por esta obra se omita
por completo a influência de Mário-Henrique Leiria e Ana Hatherly, com as
Tisanas, sobre um conjunto de autores que à entrada do séc. XXI intentaram
explorar os territórios mais experimentais da micronarrativa. Da mesma forma,
torna-se difícil aceitar que um contista como Alface, com livros fundamentais
publicados nas décadas de 1980 e 1990, seja ainda hoje, passados quase 10 anos
sobre o seu desaparecimento, um não-autor nas contas da crítica especializada.
Resta a poesia, que para o
drama não houve tempo. Reconhecida a impossibilidade do balanço, João Barrento
toma o pulso à «nossa época pós-moderna, glamorosa e hedonista», uma época que
«quer ver caras e corações, quer nomes, rostos e as vozes humanas dos poetas,
quer espectáculo e histórias (talvez por isso proliferem hoje, pelo menos na
Europa, os Festivais e as leituras de poesia)» (p. 118). Estas coisas
afirmam-se não sem razão, acolhem fácil e rapidamente a empatia de todos
quantos denunciam esse aparato vampírico da nossa época. O problema são os reis
que desfilam nus. Segue-se, então, um longo programa de enumerações
especialmente preparado para a Feira (seja ela a de Frankfurt ou a dos poetas
incipientes à espera de serem citados). Impressionante que um género tão low
profile provoque sempre tamanha celeuma e obrigue a cuidados redobrados. Será
da hipersensibilidade dos poetas? Findo o tempo dos grupos associados a
revistas, siga-se então o tempo das publicações associadas a grupos. O primeiro
passo (um dos) será dado por quatro poetas muito respeitáveis e a publicação de
um Cartucho: Joaquim Manuel Magalhães, o mais lido dos quatro nestas páginas,
João Miguel Fernandes Jorge, António Franco Alexandre, o menos lido dos quatro nestas
páginas, e Helder Moura Pereira.
Na verdade, estamos numa
encruzilhada. Tal como é impossível caminhar num pântano sem ficarmos nele
atolados, também se afigura missão impraticável falar da poesia num tempo
histórico sem nos prendermos à diversidade (imensa, no caso português, mesmo
quando adoptamos a postura exigente do cirurgião) das suas vozes. E nisto, como
em tudo, há sempre um grau de subjectividade inultrapassável. Sublinhe-se o
risco dos traços gerais. Barrento sugere três orientações maiores: 1.ª viragem
para uma poesia da experiência quotidiana, 2.ª regresso às histórias, ao poema
longo e narrativo, 3.º um ecletismo que acolhe tanto o tom elegíaco e
desencantado como o regresso à tradição. Em suma: o primeiro Joaquim Manuel Magalhães.
O problema é que estas são apenas três orientações de uma encruzilhada bem mais
complexa. Onde encaixar aqui, por exemplo, a assimilação da cultura Beatnik no Portugal
atrasado da década de 1970 em diante, nomeadamente nas obras dos três autores
por detrás da antologia Sião (Al Berto, Paulo da Costa Domingos, Rui Baião)? E
que tem que ver com esse realismo apontado por João Barrento o António Ramos
Rosa dos anos 1980 e subsequentes? E o poema em prosa, extremamente metafórico,
de Luís Miguel Nava? E a poesia minimalista de um Jorge Sousa Braga? E o
confessionalismo dito pop de uma Adília Lopes? E a reflexividade ensaística,
situada nos territórios da contracultura, de um Fernando Guerreiro? E a
diarística de um reiteradamente ignorado Silva Carvalho? O novo realismo que
João Barrento ajuda a impor é apenas uma face de um rosto cúbico, com muitas mais
do que duas faces à disposição dos leitores.
Tendemos a crer que não há tendências
dominantes na poesia de uma época senão no discurso tendencioso de um crítico.
Falar de poesia de uma época estando tão dentro dela já se nos afigura
tarefa hercúlea, quanto mais delimitar-lhe tendências. É o crítico quem procura
impor domínios, tentando separar águas que serão sempre mais fecundas se nelas se
debaterem a multiplicidade de discursos possíveis no contexto de uma literatura
polissémica. Dito isto, sobraria a dessacralização da poesia como tendência
geral não fosse, aqui e acolá, a resistência de vates mais dados às coisas do
sagrado que porventura se julgarão no papel de demiurgos a cada vez que
escrevem um verso. Ficou feio ser-se ideológico, é certo, o hermetismo entrou
em desuso, mas mantém-se uma enorme indulgência para com tudo quanto queira ver
Deus (o do Tolentino ou o do Barahona) entre as ruínas do temp(l)o. E uma
poesia do feminino, não há? Deveremos apô-la, contando com as explicações supra,
a estas tendências masculinas? Não existem respostas para estas perguntas em A Chama e as
Cinzas. Há apenas a reafirmação das «tendências elegíacas de alguma da
novíssima poesia portuguesa» como se o mundo aí tivesse parado, como se ao lado
e sobre as lágrimas contidas de uma melancolia rasa não troasse já o riso
escarninho e a ironia fina de uma poesia muito mais lúdica, satírica, solar
até.
Em suma, o diagnóstico é
hiperbólico na leitura negativista que oferece do mundo: «A escala do mundo
define-se hoje por dois parâmetros que se opõem e se completam em cada
indivíduo: o movimento das Bolsas (o único lugar onde a vida se rege ainda por
«valores») e as vivências do corpo (quase só valorizado na sua dimensão
cosmética e hedonista)» (p. 177). Quando as premissas são estas, valerá a pena
partir para a discussão crítica de um tempo? Esta é a questão que talvez devêssemos
formular antes de todas as outras, pois todas as outras serão uma consequência da
resposta a esta pergunta. O mundo parece sempre mais diverso do que esses dois
parâmetros permitem adivinhar. A crise profunda que, segundo João Barrento, afecta
hoje os estudos literários é, como todas as crises, um teste ao paradigma da
tradição que enforma tais estudos. Numa sociedade que espera dos seus cidadãos
apenas competências técnicas, torna-se quase anacrónico exigir-lhes competências
críticas. Digamos que o homem da cidade não está preparado para tanto, ele é ao
mesmo tempo carrasco das velhas figuras e vítima da ausência de tradição (a
qual redunda no desenraizamento histórico). Continuamos a pensar, as leis do
pensamento coligidas por Aristóteles são as mesmas, mas o foco e o interesse
são outros. O diagnóstico elaborado por Barrento é, desta forma, convincente na
denúncia dos perigos que nos espreitam, mas acaba por perder credibilidade
quando ao longo de 170 páginas insiste numa leitura demasiado concentrada da literatura
portuguesa. As redes de comunicação que hoje cativam as massas também têm os
seus méritos. Um deles, é o de dar a entender e mostrar que há mais literatura
para lá do cânone. E ao tempo caberá, mais do que nunca, fazer viver ou
enterrar o que já não está nas mãos dos cangalheiros da universidade.
13 comentários:
Comecei ontem a ler. Vou para a página 70 e concordo com tudo o que disseste até essa página. Basicamente: mais do mesmo.
Fiquei cheia de curiosidade de ler este livro, a tua leitura para variar é sensata, de quem conhece o que foi feito e se está a fazer ;)
Queres um haiku do Bashô, Henrique? Ando a distribuí-los.
Também tenho distribuído haiukus por sms. :-) Chuta lá um para mim. :-)
"prostitutas trevos e lua
todos dormem
debaixo do mesmo tecto"
É um dos meus preferidos...
Maravilha.
Li este texto ontem à noite, pouco depois de ser publicado. Não tenho saber suficiente para o poder comentar, mas conheço a mesma circunstância "teórica" em outras realidades. Portanto, ocorre-me agora agradecer-te a partilha do texto, resistente na navegação contra a maré organizada das expectativas. Um abraço e saúde (como dizes).
Tens toda a razão Rui Almeida. Fiquei chocada com a visão canónica e a cheirar a naftalina, do João Barrento. Muita misoginia e machismo. O livro do Fernando Pinto do Amaral "O Mosaico Fluído" ( Modernidade e Pós-Modernidade na Poesia mais Recente) é uma visão actual e mais abrangente. Mas a propósito do teu comentário e dos poetas que referes, não existe o nome de uma única poeta, anterior à Adília Lopes. Então a Isabel de Sá e a Fátima Maldonado, por exemplo, não te dizem nada?
Deve haver um equívoco, Graça Martins. Rui Almeida é outro que não o autor do post. Quanto aos poetas que refiro, entre os quais Adília Lopes, servem de exemplo enquanto obras que escapam às linhas gerais estabelecidas por João Barrento. Se Isabel de Sá e Fátima Maldonado me dizem alguma coisa? Bem, nos arquivos deste weblog poderá encontrar referências diversas a obras das autoras em causa. Obrigado pelo comentário.
Tem toda a razão, peço-lhe desculpa, não sei porquê mas pensava que este blog era do Rui Almeida, também poeta. Assim pelas iniciais hmbf não consigo reconhecer o nome...
Ainda hoje estive na FNAC de Sta. Catarina, no Porto, a folhear o livro do João Barrento e fiquei parva com tanto dislate. Só HOMENS referenciados e constantemente a chamada de atenção para a Maria Gabriela Llansol. Não existe feminismo em Portugal? Não existe uma escrita feminista? De rompante refere As Novas Cartas Portuguesas, mas das Três Marias só passa no exame a Maria Velho da Costa. Na generalidade o João Barrento revela uma atitude muito, mas muito SALAZARENTA! Dou-lhe os PARABÉNS pelo seu blog! Está SEMPRE muito bem informado.
Conheci pessoalmente a Maria Gabriela Llansol, realizei várias capas para os livros dela e conheci o João Barrento, assim como o Jaime Silva e a Hélia Correia, aliás sou amiga associada do Espaço Llansol e durante vários anos estive presente nas Jornadas, em Sintra. Mas este livro do João Barrento incomodou-me porque a visão que revela é muito redutora e em relação à poesia, a maioria das vozes femininas são omitidas. E fiquei chocada. Desculpe o meu desabafo. É o boicote constante, seja nas Letras, seja nas Artes, ao trabalho das mulheres. No caso da Llansol é diferente, devem estar a fazer um bonequinho...
para ser vendido nas próximas Jornadas...
...talvez ao usar "a poeta" em vez de "a poetisa" seja um contributo para a desfeminização da escrita em Portugal. E, por analogia, usar-se-à "a escritor" e, assim, passaremos a ter uma escrita andrógina.
Pois.
Nem dá para comentar...O melhor de tudo são as queijadinhas Al Berto's...
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