Pessoas que amam a democracia, mas são incapazes de
discutir um assunto sem se exaltarem e começarem a cuspir perdigotos enquanto
acusam com o indicador em riste: estás a contradizer-te. / Pessoas que detestam
uniformes mas convivem pessimamente com os paradoxos do pensamento. / Pessoas
para quem tudo tem uma lógica tão infalível como uma equação matemática. / Pessoas
que odeiam ditaduras, mas convivem cumplicemente com o estalinismo tecnocrático
de inúmeras empresas a operar no mais selvagem dos capitalismos. / Pessoas liberais
para quem dois homens a beijarem-se na rua reflecte um comportamento intolerável, inadmissível. / Pessoas
capazes de desencantar valores morais de entre os bichos, como se a moral não fosse
uma abstracção do pensamento humano maleável pelo tempo, pela história, pela
cultura, pelas ideias. / Pessoas que não são racistas, mas... / Pessoas que vivem entre outras pessoas que vivem entre
outras pessoas que vivem entre animais. /Pessoas para quem os animais são
pessoas mas as pessoas não são animais. / Pessoas que acreditam em Deus mais do que acreditam nos homens que têm à sua frente. / Pessoas capazes de ver um conflito
onde há apenas o gozo da discussão inútil. / Pessoas que falam como se estivessem a evangelizar. / Pessoas incapazes de reconhecer a
inutilidade dos conflitos. / Pessoas com duas pernas, dois braços, dois olhos,
dois ouvidos, duas narinas, uma boca e um gorro enfiado na cabeça. / Pessoas
que mugem, vacas que falam. / Pessoas que vivem. E subitamente desaparecem.
5 comentários:
A ficção seria uma maneira interessante de dizer certas coisas sem que parecesse com evangelização. Mas há muitas desvantagens em dizer coisas através da ficção. E dificuldades em dizer através de ensaios, sem parecer ao menos didático, após mais de duas décadas, a título de exemplo, de pesquisas sobre determinados assuntos.
Me coloco entre as pessoas "capazes de desencantar valores morais de entre os bichos". Gosto muito de um livro que disso trata, do biólogo e primatólogo Frans de Waal, intitulado "A Era da Empatia". Há argumentos interessantes de que "amoral" não é somente "uma abstração do pensamento humano [...]".
Pensando bem, talvez me considere também do tipo de "pessoas que mugem, vacas que falam". :)
Excelente postagem.
Saúde.
Por falar em racismo, há no clube português das letras afrodescendentes com livros publicados?
Sim, há. Assim de repente, ocorre-me o José Luiz Tavares. Mas há outros.
Obrigada Henrique, sem ti não me educo. Fui logo à procura dele na internet; nta curti-bu.
:-)
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