Há coisa de 2000 anos (talvez nem tanto), quando o
cristianismo tentava impor-se no mundo, havia uns tipos com mentalidade
justiceira que impunham a moral à lei da pedra. Andavam literalmente com sacos
de pedras pendurados à cintura, atirando sobre quem blasfemasse ou de algum
modo se opusesse a uma concepção moral que tinha em Jesus na Terra a sua figura
honorífica. O filho de Deus, que andara a apregoar o amor entre os homens,
assistia assim a uma paradoxal defesa da sua mensagem: apedreje-se aquele que não
amar seu semelhante. Enfim, são as contradições naturais de qualquer idolatria.
Entretanto o mundo evoluiu, os homens passaram a
idolatrar-se a si próprios e colocaram-se no lugar
de deuses capazes de julgar os sentimentos dos outros (jamais os de si
próprios, esses são inquestionáveis). Há pessoas que continuam a adornar a
indumentária quotidiana com sacos de pedras, embora o façam lá na protecção das
suas redes internéticas à distância que a cobardia permite.
Tornou-se comum, por exemplo, quando alguém
manifesta pesar/indignação por um qualquer atentado, surgir de imediato uns seres prontos a
apedrejar a manifestação de pesar/indignação com evidências aterradoras: lamentas este mas não lamentaste aquele. Na cabeça destas pessoas, deveríamos
lamentar todos os atentados sem excepção como se fosse possível senti-los a
todos de igual modo.
Pessoas que pensam assim merecem-me respeito, devem
ter vidas verdadeiramente infelizes. É que a toda a hora, desde há muito, se
verificam inúmeros atentados pelos quatro cantos do mundo. Devem passar a vida
a lamentá-los, desconfio mesmo que não durmam. Ou se dormem, têm horríveis
pesadelos, deitam-se com lamentos, sonham com lamentos, acordam com lamentos.
De facto, como não sentir da mesma maneira um atentado em Sukhothai ou em
Paris? Só um hipócrita, na melhor das hipóteses um cínico, é que pode ser capaz
de lamentar mais a morte de um parisiense do que de um habitante no lugar
remoto de Sukhothai. Atiremos pedras ao cínico, apedrejemos o hipócrita, há que
denunciar a sua baixa moral.
Tornou-se também vulgar assistir a todo o tipo de
questionamentos face ao pesar pela morte de alguém. Quando alguém morre, é
natural que surjam reacções à sua morte. Maioritariamente de pesar. Quem não
gostou do defunto em vida, o mais que deve fazer à hora da morte do ser humano
em causa é calar-se. Por uma questão de respeito, digo eu. Mas não é bem isso
que sucede, os parabolanos do séc. XXI aí estão para nos denunciar todo o tipo
de contradições. O silêncio já não tem qualquer valor, o respeito deixou de ser
bonito. Quer-se tudo a conversar e a fazer muito ruído.
Morre um artista e surgem no ar inúmeras memórias e
partilhas da obra do artista. Tudo seria normal, não fosse vir logo um zelador da
coerência lembrar-nos que nunca antes, enquanto o artista foi vivo, partilhámos
o que quer que fosse desse mesmo artista ou sequer lhe fizemos a mais ínfima
menção. Então agora toda a gente gosta do Prince? Pergunta o zelador,
atirando-nos à cara a vergonha das nossas vidas.
A pessoas que deviam ter um
pingo de bom senso na cabeça, ouvi eu dizer aquando da notícia da morte de
George Michael: estou-me a cagar para o George Michael. Ninguém esperaria
o contrário, mas seria no mínimo desejável que, à hora da morte do indivíduo, pelo menos um mínimo respeito pela perda prevalecesse e se manifestasse num silêncio indiferente. Já
não chega a indiferença, é preciso fazer bandeira de si próprio: eu nunca gostei de
George Michael e digo-o, não sou hipócrita, não é agora que ele morreu que vou
dizer bem dele.
Ninguém esperava elogios, nem sequer ninguém estava minimamente interessado em saber se a obra de George Michael tinha alguma
relevância na vida do Zé da Esquina que quer dizer ao mundo que jamais sentiu
alguma coisa pelo autor de Wake me up before you go-go. Pela parte que me
toca, se o Zé da Esquina fosse suficientemente inteligente para se manter
calado, já seria uma bênção. Como não espero inteligência de um Zé da Esquina,
que fosse pelo menos suficientemente modesto para perceber que a sua opinião
não é relevante. É só mais ruído.
Veja-se o que está a suceder com Mário Soares, outra
espécie de artista. O homem acabou de morrer, já toda a gente o esperava. Teve influência no curso do país como poucos, foi
duas vezes Presidente da República, uma vez reeleito com enorme popularidade. O
mais normal e óbvio é haver quem lamente a sua perda. Eu, que nunca votei no
homem nem era especial fã, lamento a perda e reconheço-lhe o valor de ter
lutado contra o fascismo. Nada disto tem qualquer valor face à grande questão do parabolano moderno: então agora toda a gente gosta de
Mário Soares? E logo começa o parabolano a atirar as suas pedras, umas mais
consistentes do que outras, porque ou simplesmente ignorantes ou menos
simplesmente ideológicas, atirando-nos à cara eventuais malfeitorias, defeitos,
vícios do homem enquanto actor.
O parabolano tem pelo menos o mérito de nos
fazer pensar os ínvios caminhos do moralismo na actualidade, a
lógica rasteira, abstrusa e capciosa, diria mesmo burra do mais burro que pode
haver, dos detentores da pós-verdade, enfim a palermice, o infantilismo, a
patetice generalizada nas redes que proíbem maminhas ao léu mas aceitam todo o
tipo de dejectos que um esgoto aceita sem que se verifique grandes incómodos
com o estado da situação. De resto, são inúmeras as pessoas que tendem a aderir ao
esgoto com evidente gosto e falta de espírito crítico. O que as torna apenas
ainda mais coerentes com as suas práticas murídeas. Uma coisa é certa, quando morrerem ninguém o
lamentará.
4 comentários:
Amen, Amen!!
Allahu Akbar :-)
Bolas, que me soube tão bem ler isto!
Não podia estar mais de acordo.
Abraço, hmbf.
E roubo o post para terras facebookianas.
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