terça-feira, 30 de maio de 2017

REMINISCENTE


(Poema anti-saudosista)

1

Apagou-se o candil duma antiga saudade
Que me acenderam numa sala da memória,
Onde sozinho me deixaram
À espera que chegasse o médico da casa.

Eu padecia de lembranças sucessivas,
Incongruentes, interseccionadas,
Como a sombra das árvores quando as luzes
São móveis e de vária intensidade.

(Mordomo, por exemplo, do castelo
Onde já fui morgado,
Agora ia sofrendo a mágoa de o não ser
E após sentia a dor de me saber sonhando
sem poder acordar).

2

Irado porque o espelho onde pousei a fronte,
Liquefeito ao calor da minha febre
Me entrou pelos olhos dentro,
Bati com toda a força numa esquina do fogão
Até partir o crânio e despejá-lo a rir
De ter posto lá fora o espelho impertinente.

Depois fui assentar-me numa nuvem
De tabaco holandês que roubei a meu pai,
À espera que chegasse o médico da casa.
Mas, ai! a dor já era doutro lado,
Oriunda, talvez, do tanque onde eu brincava
E um dia me afoguei sinceramente
E fui comido pelas rãs e pelos sapos.

3

O relógio de pinho, a fingir de borracha,
Caía da parede ao chão e vice-versa;
E o cuco, sem tirar os olhos da cadeira
Onde eu me fui sentar,
Surripiava as horas lá de dentro
E atirava com elas à vidraça
A fingir que era o tempo.

Eu não sei se dormia ou se estava a pensar
Que tudo isto me podia acontecer,
No reino felizmente ainda ignoto
Da Quarta Dimensão:
— Mas a verdade é que senti outra pontada
Por causa da sirene que silvava
Dentro dum frasco de remédio,
Onde vi naufragar o titanic.

4

Ai, que tristeza a minha! Ai, que tristeza!
Tão jovem, tão sportivo,
E o peito, assim, tão cheio de Passado,
Arfando molemente
Como debaixo d'água!

(Embaciadas, lúgubres lembranças
Da minha meninice...)

Ali cheirava tanto a coisas esquecidas
Em gavetas fechadas e sem chave
Por serem recordações!

Ali doía tanto a glória de ser novo
E ter nascido português e ser
Romântico hereditário!

"Tenham pena de mim, vamos! Lamentem
Que eu não seja do Norte!
Ensinem-me a sorrir nos lábios tendo
O claro frio dos fjords!
Digam todos em coro que sou esbelto
E penso escandinavo!"

(Isto sonhando, assim, como dizendo,
O cabelo rasgava por não ser
Do louro natural das novas raças.)

5

Mais densa do que o ar a nuvem desce
Comigo e pousa sobre a secretária;
Espalha-se o tabaco pela sala...
— E agora, com o pai quase a chegar,
Amanhã já não vou ao cinema.

Se eu tivesse uma irmã era ela
que dizia que foi o vento:
Mas eu não tenho olhos de donzela
Para mentir com talento...

6

A febre que me vem das penas de pavão
Em jarras, — porque a avó não tem superstições, —
Sobe tão alto que o mercúrio
Rebenta no termómetro.

(E o médico sem vir
Curar a minha dor destas coisas antigas
Que me entraram nos olhos como espigas
E não podem sair, e não podem sair!)

7

Mas o pior não é isto: o pior
É que Morfeu não tarda aí
De dentro daquele armário,
Com um abismo — pérfido! — nos braços,
Coberto com papel e um sorriso,
— Como um açafate de flôres.

Tem muita graça, não tem?
Vir assim abusar de um espírito indefeso
Que na terra surgiu num sem-querer de cardos,
Como criança maltratando
Um pássaro engaiolado!

8

Se batessem à porta e me acordassem!
Se alguém se debruçasse sobre mim
E levemente pelo nome me chamasse,
— Era o bastante, como antigamente,
Para ir p'rá escola...

Sim, porque embora tudo isto seja sonho,
Metade d'alma está desperta e atenta
Sofrendo pela outra,
Como um burguês numa janela sofre
Ao ver um ébrio passar na rua.

9

Ah! o passado, o passado!
Que ventoinha, que remoinho,
Que sorvedouro inexorável!
— Todas as bolas se perdiam agora para sempre
No encantado canteiro do jardim,
Que era em frente da nossa casa
O meu recreio predilecto:
Mesmo quando a fingir ao destino sem querer
(Heróica experiência que recorda
O papagaio de Franklin),
Ao ar as atirava no sentido
De lá irem cair — o saudoso canteiro! —
Onde as últimas horas dessas tardes
Em vão perdia a procurá-las...

E o doce mistério do profundo
Escuro poço esvaziado,
Quando os ramos a arder que eu lá cair
Deixava, a meio sempre se apagavam?!

E o som das pedras atiradas
P'ra dentro da cisterna?
— Que tardes esquecidas a escutá-lo,
Sozinho, na herdade! que Infinito
As vibrações sonoras da água me eram
No quase-espasmo de senti-las!

10

Ah! o passado, o passado!
Não conhecem aí nenhum dentista
Que me arranque este dente cariado?

Para que quero eu isto? (esta saudade?)
Eu, que não sou filatelista,
Nem numismata, nem bibliófilo,
Nem arqueólogo, nem nada
Disso, que vai além de ser sif'lítico?!

11

Aquela vez? aquel' passeio?
Aquela menina que me disse
"Pois sim, quando quiser"?
Aquela criada velha que me queria
Como se eu fosse seu filho?
O colégio? o avô? as férias grandes?
Os meus brinquedos? o meu fato de marujo?

Tudo isso passou, tudo isso morreu!
Com isso já não posso fazer nada
E cheira mal, — mesmo se cheira a flores, —
E sabe mal, — mesmo se sabe a frutos! —

A memória devia
ser uma espécie de cabelo
que a gente cortasse quando quisesse...

(Mas finalmente, finalmente
Vêm bater à porta! Vem aí,
Com certeza, o café! Já ouço mesmo
Chamar por mim: MENINO...)
E eu volto a ser igual a toda a gente.

Lisboa, 1925.

Carlos Queirós (n. 1907 - m. 1949), in Presença, n.º 23. O desaparecimento precoce não o impediu, apesar da obra curta, de se tornar num dos mais representativos poetas presencistas. A primeira edição de Desaparecido data de 1935, tendo merecido à época rasgados elogios do colega Fernando Pessoa que viria a falecer nesse mesmo ano. Na História da Literatura Portuguesa, A. J. Saraiva e Óscar Lopes dedicam-lhe uma linha lacónica: «verte em formas mais flexíveis mas cantantes a temática lírica tradicional». Adolfo Casais Monteiro coloca-o como discípulo directo de Fernando Pessoa, ou seja, em sintonia com um "segundo modernismo" que ao combinar melancolia com ironia busca «nas luzes da cidade uma ilusão de presença impossível, perseguindo pelas sombras da noite dos bares e nas miragens da vida nocturna, na agitação "mundana", um sonho impossível, e o adormecimento duma insatisfação que é angústia de eterno adolescente perante a vida». 

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