sexta-feira, 9 de junho de 2017

DOIS LIVROS DE SANDRA ANDRADE

Julgo não merecer discussão a tese segundo a qual atravessamos neste momento uma revolução sem precedentes. O tempo avizinhado permite-nos demarcar o final do século passado, com o advento das novas tecnologias da formação e da informação, como a época em que se começou a desenhar essa revolução. Avanços aparentemente imparáveis nas áreas da informática permitiram desenvolvimentos biotecnológicos que nos levaram a falar de pós-humanidade, não sendo a tais progressos alheia a eleição da pós-verdade como neologismo do ano em 2016. Vivemos, portanto, num “futuro póstumo”. Roubo a expressão a uma poeta portuguesa da minha geração. Chama-se Sandra Andrade (n. 1976), é natural de Bragança, e publicou dois livros de poemas: Para Acabar de Vez com a Retórica (&etc, Outubro de 2014) e doppelgänger (Debout Sur l’Oeuf, Abril de 2016). Li primeiro o segundo, ficando de tal modo impressionado que não resisti a procurar o primeiro.
Há entre os dois uma coerência que não será difícil de constatar, desde logo quando no texto inicial de doppelgänger Sandra Andrade menciona uma carta enviada a Enrique Vila-Matas referindo-se ao seu primeiro livro nos seguintes termos: «el punto de partida son mis afinidades electivas». O escritor espanhol é uma dessas afinidades, entre muitas outras que surgem evocadas sob a forma de títulos para textos, maioritariamente em prosa, com os quais estabelecem relações que não vale a pena tentar circunscrever. No fundo, são aqueles a quem Baudelaire chamou de faróis num conhecido poema, nomes de um anárquico conjunto onde se incluem cineastas, escritores, músicos, artistas, cientistas, por certo influentes na formação cultural, filosófica, ética da autora em causa. Entre eles, quero aqui destacar artistas performativos tais como Marina Abramović e Bas Jan Ader, a fotógrafa Francesca Woodman e os experimentalistas Current 93, por neles ser perceptível um exercício da performance na qual esta poesia se enraíza, lembrando, tanto na forma como na linguagem, a obra poética de uma Karen Finley (vide Tratamento de Choque, Frenesi, 2003). 
Outra dimensão evidente nos poemas destes dois livros é a catarse enquanto motor da escrita, uma catarse que tanto pode vir do sentimento angustiado que a evocação de alguns homens do blues suscita como da percepção de um quotidiano onde a derrota e o insucesso inspira compaixão pelos fracos, pelos humilhados, pelos ofendidos, pelos desprotegidos: «hoje deu-me vontade de abraçar a miúda que me serviu o café. era tão cedo e já estava tão assustada» (Para Acabar de Vez Com a Retórica, p. 31). Noutras ocasiões, esse quotidiano surge violentamente expresso em imagens de uma crueldade tão cínica quanto melancólica: «não tenho a ingenuidade de pensar que este coração nas mãos transporte qualquer tipo de sucesso. mas é esta a matéria prima que carrego» (doppelgänger, p. 45). Há um poema do primeiro livro onde estas características confluem para uma espécie de anti-erotismo que não ficaria mal numa colectânea de humor negro:

ADÍLIA LOPES

ponha-me essa bagagem que traz no lado esquerdo
ao lado do tanque
que está calor e eu estou cansada
e o dia está mais inclinado
a que
muito provavelmente
o senhor acabe a fazer-me 1 minete

disse a madame ao rapaz que estava estafado e cheio de sede e ela
nem uma limonada lhe fez e assim se procedeu ao minete.

Mas onde os poemas de Sandra Andrade se distinguem verdadeiramente é na inclusão de todo um leque diverso de referenciais, provenientes tanto da física como da ficção científica, que nos transportam para cenários futuristas de tal modo apocalípticos que se chega a reclamar de novo na paisagem a presença humana. Não são meramente caprichosas as referências ao físico Michio Kaku e ao escritor Philip K. Dick no primeiro livro, nem ao Dune de Frank Herbert e ao físico Erwin Schrödinger no segundo livro. Assim como também não será ocasional que alguns dos títulos do segundo livro, quando googlados, nos enviem para fóruns de discussão da saga Star Trek. Outro dado a apontar é a repetição em ambos os livros do conceito “holograma”, evocação de uma realidade fantasmática por oposição ao mundo orgânico. O próprio título doppelgänger parece pretender deslocar a poesia de um estatuto demiúrgico para o de universo paralelo, conferindo-lhe um regime holográfico baseado nas capacidades do lendário monstro germânico cujo dom principal é copiar a identidade de uma pessoa. Clonado, copiado, repetido, encriptado, não merece senão desprezo o tipo de escritor convocado numa espécie de ars poetica intitulada “metam os textos na cripta (El Mal de Montano)”. O ar dos tempos promove o eremitismo dos inadaptados, isola-os nas suas hortas selvagens com o desejo ambivalente de um passado extinto sem fé nos paraísos perdidos. A pós-realidade é o que aqui está em causa, numa escrita que reivindica para si o bruto, o autêntico, o cruel e o violento retrato do texto como forma de purgação. Eis um exemplo, cínico e (des)iludido, como convém num combate aberto à hipocrisia reinante na actualidade:

the spice must flow


a única estação que existe é este espesso nevoeiro e a única colheita são estas árvores metálicas com frutos nano tecnológicos. chegar a casa é um prolongamento de caminhar nesta chuva ácida e ligar o microondas. os neoliberais salvaram tudo e todos, sim senhora. esses heróis tecnológicos positivos da nova era. alguns poucos queriam terra e cravos outra vez. mas ao fim do dia ligam-se ao computador para um acesso aditivo crescente. e esquecem. esta espécie de net junkies está impreparada para a revolução. e a informação que procuram é cíclica e implacável. os dias passam e tudo é pior. junto-me enquanto é tempo aos oleiros, aos carpinteiros, aos agricultores, aos alfaiates. pessoas que redigem cartas à mão. e construímos a balança. um pouco tóxicos na cabeça mas verticais. com mãos lúcidas e iniciáticas.

Sem comentários: