Julgo não merecer discussão a tese segundo a qual atravessamos neste momento uma revolução sem precedentes. O tempo avizinhado permite-nos
demarcar o final do século passado, com o advento das novas tecnologias da formação
e da informação, como a época em que se começou a desenhar essa revolução.
Avanços aparentemente imparáveis nas áreas da informática permitiram
desenvolvimentos biotecnológicos que nos levaram a falar de pós-humanidade, não
sendo a tais progressos alheia a eleição
da pós-verdade como neologismo do ano em 2016. Vivemos, portanto, num “futuro
póstumo”. Roubo a expressão a uma poeta portuguesa da minha geração. Chama-se
Sandra Andrade (n. 1976), é natural de Bragança, e publicou dois livros de
poemas: Para Acabar de Vez com a Retórica (&etc, Outubro de 2014) e doppelgänger
(Debout Sur l’Oeuf, Abril de 2016). Li primeiro o segundo, ficando de tal modo
impressionado que não resisti a procurar o primeiro.
Há entre os dois uma
coerência que não será difícil de constatar, desde logo quando no texto inicial
de doppelgänger Sandra Andrade menciona uma carta enviada a Enrique Vila-Matas
referindo-se ao seu primeiro livro nos seguintes termos: «el punto de partida
son mis afinidades electivas». O escritor espanhol é uma dessas afinidades,
entre muitas outras que surgem evocadas sob a forma de títulos para textos,
maioritariamente em prosa, com os quais estabelecem relações que não vale a pena tentar circunscrever. No fundo, são aqueles a quem Baudelaire chamou
de faróis num conhecido poema, nomes de um anárquico conjunto onde se
incluem cineastas, escritores, músicos, artistas, cientistas, por certo influentes
na formação cultural, filosófica, ética da autora em causa. Entre eles, quero
aqui destacar artistas performativos tais como Marina
Abramović e Bas Jan Ader, a fotógrafa Francesca Woodman e os experimentalistas
Current 93, por neles ser perceptível um exercício da performance na qual esta
poesia se enraíza, lembrando, tanto na forma como na
linguagem, a obra poética de uma Karen Finley (vide Tratamento de
Choque, Frenesi, 2003).
Outra dimensão evidente nos poemas destes dois livros é a catarse enquanto motor da escrita, uma catarse que tanto pode vir do sentimento angustiado que a evocação de alguns homens do blues suscita como da percepção de um quotidiano onde a derrota e o insucesso inspira compaixão pelos fracos, pelos humilhados, pelos ofendidos, pelos desprotegidos: «hoje deu-me vontade de abraçar a miúda que me serviu o café. era tão cedo e já estava tão assustada» (Para Acabar de Vez Com a Retórica, p. 31). Noutras ocasiões, esse quotidiano surge violentamente expresso em imagens de uma crueldade tão cínica quanto melancólica: «não tenho a ingenuidade de pensar que este coração nas mãos transporte qualquer tipo de sucesso. mas é esta a matéria prima que carrego» (doppelgänger, p. 45). Há um poema do primeiro livro onde estas características confluem para uma espécie de anti-erotismo que não ficaria mal numa colectânea de humor negro:
Outra dimensão evidente nos poemas destes dois livros é a catarse enquanto motor da escrita, uma catarse que tanto pode vir do sentimento angustiado que a evocação de alguns homens do blues suscita como da percepção de um quotidiano onde a derrota e o insucesso inspira compaixão pelos fracos, pelos humilhados, pelos ofendidos, pelos desprotegidos: «hoje deu-me vontade de abraçar a miúda que me serviu o café. era tão cedo e já estava tão assustada» (Para Acabar de Vez Com a Retórica, p. 31). Noutras ocasiões, esse quotidiano surge violentamente expresso em imagens de uma crueldade tão cínica quanto melancólica: «não tenho a ingenuidade de pensar que este coração nas mãos transporte qualquer tipo de sucesso. mas é esta a matéria prima que carrego» (doppelgänger, p. 45). Há um poema do primeiro livro onde estas características confluem para uma espécie de anti-erotismo que não ficaria mal numa colectânea de humor negro:
ADÍLIA LOPES
ponha-me essa bagagem que traz no lado esquerdo
ao lado do tanque
que está calor e eu estou cansada
e o dia está mais inclinado
a que
muito provavelmente
o senhor acabe a fazer-me 1 minete
disse a madame ao rapaz que estava estafado e cheio de
sede e ela
nem uma limonada lhe fez e assim se procedeu ao minete.
Mas onde os poemas de Sandra Andrade se distinguem verdadeiramente é na inclusão de todo um leque diverso de
referenciais, provenientes tanto da física como da ficção
científica, que nos transportam para cenários futuristas de tal modo
apocalípticos que se chega a reclamar de novo na paisagem a presença humana. Não
são meramente caprichosas as referências ao físico Michio Kaku e ao escritor
Philip K. Dick no primeiro livro, nem ao Dune de Frank Herbert e ao físico
Erwin Schrödinger no segundo livro. Assim como também não será ocasional que
alguns dos títulos do segundo livro, quando googlados, nos enviem para fóruns de
discussão da saga Star Trek. Outro dado a apontar é a repetição em ambos os
livros do conceito “holograma”, evocação de uma realidade fantasmática por
oposição ao mundo orgânico. O próprio título doppelgänger parece pretender deslocar a poesia de um estatuto demiúrgico
para o de universo paralelo, conferindo-lhe um regime holográfico baseado nas capacidades do lendário
monstro germânico cujo dom principal é copiar a identidade de uma pessoa. Clonado,
copiado, repetido, encriptado, não merece senão desprezo o tipo de escritor convocado numa
espécie de ars poetica intitulada “metam os textos na cripta (El Mal de
Montano)”. O ar dos tempos promove o eremitismo dos inadaptados, isola-os nas
suas hortas selvagens com o desejo ambivalente de um passado extinto sem fé nos
paraísos perdidos. A pós-realidade é o que aqui está em causa, numa
escrita que reivindica para si o bruto, o autêntico, o cruel e o violento retrato
do texto como forma de purgação. Eis um exemplo, cínico e (des)iludido, como convém
num combate aberto à hipocrisia reinante na actualidade:
the spice must flow
a única estação que existe é este espesso nevoeiro e a
única colheita são estas árvores metálicas com frutos nano tecnológicos. chegar
a casa é um prolongamento de caminhar nesta chuva ácida e ligar o microondas. os
neoliberais salvaram tudo e todos, sim senhora. esses heróis tecnológicos
positivos da nova era. alguns poucos queriam terra e cravos outra vez. mas ao
fim do dia ligam-se ao computador para um acesso aditivo crescente. e esquecem.
esta espécie de net junkies está impreparada para a revolução. e a informação
que procuram é cíclica e implacável. os dias passam e tudo é pior. junto-me
enquanto é tempo aos oleiros, aos carpinteiros, aos agricultores, aos
alfaiates. pessoas que redigem cartas à mão. e construímos a balança. um pouco
tóxicos na cabeça mas verticais. com mãos lúcidas e iniciáticas.
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