Nas memórias coligidas em Século Passado (Cotovia, 2007),
Jorge Silva Melo revela logo nas primeiras páginas que O Tesouro de Sierra
Madre foi o último filme que viu em família, em véspera de Dia de Estudantes de
1964, no Condes. À margem da sessão, um episódio que merece ser recuperado:
«quando saímos, a polícia de choque, Restauradores fora, carregava sobre os
estudantes que se tinham concentrado entre o Éden e o Condes». A ironia está em
dois factos distintos. Primeiro, The Treasure of the Sierra Madre/O Tesouro da
Sierra Madre (1948) é na sua origem um filme de família. John Huston (n. 1906 –
m. 1987), o realizador, dirige o seu pai, o actor Walter Huston, num filme que
valeu três Oscars lá para casa: melhor realizador e melhor argumento para John,
melhor actor secundário para Walter. Segundo, o filme baseia-se no romance
homónimo de B. Traven.
Figura misteriosa, acerca da qual ainda hoje pouco se
sabe de concreto, supõe-se que B. Traven tenha sido um dos pseudónimos do polaco
Otto Feige, revolucionário e anarquista do início do séc. XX, exilado no México
após complicações várias com as autoridades europeias. De B. Traven publicou a
Antígona, há tempos, uma colectânea de contos intitulada O Visitante da Noite.
De um outro eventual pseudónimo de Otto Feige, lemos En el estado más libre del
mundo – textos de combate assinados como Ret Marut. À sua maneira, esta obra
iniciática de John Huston é também ela mesma revolucionária para o seu tempo. A
história presta-se a isso.
Dois jovens americanos indigentes juntam-se a um velho prospector
na busca de ouro em território mexicano. Já não estamos a falar da “febre do
ouro” aludida em inúmeros westerns, nem no tipo de garimpeiros que o místico Pale
Rider resolveu proteger. Este filme não é um western no sentido clássico do termo.
A acção decorre nos anos 20 do século passado, os protagonistas são forasteiros
que se arrastam a pedir esmola pelas ruas da cidade. Pouco têm que ver com os
velhos cowboys, mesmo com as desapiedadas e desgraçadas figuras entregues ao
álcool ou à mais completa solidão. Não são outlaws com o sentido trágico da existência,
não perseguem índios nem por estes são perseguidos.
Portanto, não são o espaço e o tempo, não são os bandidos
nem os indígenas nem as perseguições nem os tiroteios que conferem ao filme a marca
de uma recriação do Old West. É antes o duelo mantido, sob a forma de diálogo,
entre as personagens interpretadas por Humphrey Bogart e Tim Holt, este último bastante
experiente no domínio do western com participações, entre outros, nos clássicos
Stagecoach (1939) e My Darling Clementine (1946). É neste duelo que
vislumbramos algo de verdadeiramente revolucionário, desde o aperto de mão
filmado em grande plano com o rosto incrédulo de Walter Huston em pano de
fundo, à contenda que isolará Bogart num labirinto de dúvidas interiores onde
se tornará difícil destrinçar a loucura da racionalidade.
Unidos pelo ouro, isto é, pela perspectiva de uma vida
melhor suportada na descoberta de ouro, acabarão fatalmente separados pela
cegueira e pela irracionalidade. Avareza e ganância são o veneno nas flechas
que atingirão os elos de confiança estabelecidos entre ambos, rasgando-os como
se de um momento para o outro o ferro se transformasse em seda. Não vale a pena
citar os diálogos nem descrever as cenas em que o duelo de consciências adquire
feição no rosto dos actores, transformando este filme naquilo a que críticos e
historiadores fixarão com o termo “neo-western”.
O mais curioso de constatar é ter este filme surgido numa
década de ouro para o género, num ano, o de 1948, em que estrearam The Man From
Colorado, de Henry Levin, Red River, de Howard Hawks, Fort Apache, de John
Ford, Yellow Sky, de William A. Wellman, todos eles celebrando feitos heróicos e seu Olimpo de protagonistas. Quando o western estava no auge da sua
popularidade, havia quem investisse no neo-western conquistando novas
linguagens para o mais antigo dos géneros cinematográficos. Revolucionário
também por isso, John Huston filmou como ninguém o herói fracassado, o perdedor
a quem Hollywood não oferecia a moral da história. Levado pelo vento, o ouro de
Sierra Madre é uma grande lição que a arte presta à vida: ganhar ou perder,
interessa é jogar. Mais sucesso, menos sucesso, importa fazer. Não há heróis sem derrota. E desta, resta-nos rir.
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