quinta-feira, 8 de junho de 2017

THE TREASURE OF THE SIERRA MADRE (1948)


Nas memórias coligidas em Século Passado (Cotovia, 2007), Jorge Silva Melo revela logo nas primeiras páginas que O Tesouro de Sierra Madre foi o último filme que viu em família, em véspera de Dia de Estudantes de 1964, no Condes. À margem da sessão, um episódio que merece ser recuperado: «quando saímos, a polícia de choque, Restauradores fora, carregava sobre os estudantes que se tinham concentrado entre o Éden e o Condes». A ironia está em dois factos distintos. Primeiro, The Treasure of the Sierra Madre/O Tesouro da Sierra Madre (1948) é na sua origem um filme de família. John Huston (n. 1906 – m. 1987), o realizador, dirige o seu pai, o actor Walter Huston, num filme que valeu três Oscars lá para casa: melhor realizador e melhor argumento para John, melhor actor secundário para Walter. Segundo, o filme baseia-se no romance homónimo de B. Traven.
Figura misteriosa, acerca da qual ainda hoje pouco se sabe de concreto, supõe-se que B. Traven tenha sido um dos pseudónimos do polaco Otto Feige, revolucionário e anarquista do início do séc. XX, exilado no México após complicações várias com as autoridades europeias. De B. Traven publicou a Antígona, há tempos, uma colectânea de contos intitulada O Visitante da Noite. De um outro eventual pseudónimo de Otto Feige, lemos En el estado más libre del mundo – textos de combate assinados como Ret Marut. À sua maneira, esta obra iniciática de John Huston é também ela mesma revolucionária para o seu tempo. A história presta-se a isso.
Dois jovens americanos indigentes juntam-se a um velho prospector na busca de ouro em território mexicano. Já não estamos a falar da “febre do ouro” aludida em inúmeros westerns, nem no tipo de garimpeiros que o místico Pale Rider resolveu proteger. Este filme não é um western no sentido clássico do termo. A acção decorre nos anos 20 do século passado, os protagonistas são forasteiros que se arrastam a pedir esmola pelas ruas da cidade. Pouco têm que ver com os velhos cowboys, mesmo com as desapiedadas e desgraçadas figuras entregues ao álcool ou à mais completa solidão. Não são outlaws com o sentido trágico da existência, não perseguem índios nem por estes são perseguidos.
Portanto, não são o espaço e o tempo, não são os bandidos nem os indígenas nem as perseguições nem os tiroteios que conferem ao filme a marca de uma recriação do Old West. É antes o duelo mantido, sob a forma de diálogo, entre as personagens interpretadas por Humphrey Bogart e Tim Holt, este último bastante experiente no domínio do western com participações, entre outros, nos clássicos Stagecoach (1939) e My Darling Clementine (1946). É neste duelo que vislumbramos algo de verdadeiramente revolucionário, desde o aperto de mão filmado em grande plano com o rosto incrédulo de Walter Huston em pano de fundo, à contenda que isolará Bogart num labirinto de dúvidas interiores onde se tornará difícil destrinçar a loucura da racionalidade.
Unidos pelo ouro, isto é, pela perspectiva de uma vida melhor suportada na descoberta de ouro, acabarão fatalmente separados pela cegueira e pela irracionalidade. Avareza e ganância são o veneno nas flechas que atingirão os elos de confiança estabelecidos entre ambos, rasgando-os como se de um momento para o outro o ferro se transformasse em seda. Não vale a pena citar os diálogos nem descrever as cenas em que o duelo de consciências adquire feição no rosto dos actores, transformando este filme naquilo a que críticos e historiadores fixarão com o termo “neo-western”.

O mais curioso de constatar é ter este filme surgido numa década de ouro para o género, num ano, o de 1948, em que estrearam The Man From Colorado, de Henry Levin, Red River, de Howard Hawks, Fort Apache, de John Ford, Yellow Sky, de William A. Wellman, todos eles celebrando feitos heróicos e seu Olimpo de protagonistas. Quando o western estava no auge da sua popularidade, havia quem investisse no neo-western conquistando novas linguagens para o mais antigo dos géneros cinematográficos. Revolucionário também por isso, John Huston filmou como ninguém o herói fracassado, o perdedor a quem Hollywood não oferecia a moral da história. Levado pelo vento, o ouro de Sierra Madre é uma grande lição que a arte presta à vida: ganhar ou perder, interessa é jogar. Mais sucesso, menos sucesso, importa fazer. Não há heróis sem derrota. E desta, resta-nos rir.

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