Isto começa assim: na escola primária aproximas-te do
gajo mais popular da turma, na esperança de que, sendo reconhecida e aceite a
tua amizade, muitas portas se abrirão. O gajo mais popular é sempre filho de
pais ricos, tem casa com piscina. E tu queres fazer parte do grupo que vai à
piscina. Mais tarde, vez que o gajo mais popular da escola foi convidado para
fazer parte da lista que concorre à Associação de Estudantes. Com o dinheiro
dele, os cromos que sonham com carreira nas juventudes partidárias conseguirão
autocolantes e cartazes apelativos, exibem um rosto forte nas listas,
sentem-se eles próprios mais populares. Tu ficas de fora, mas olhas para tudo
com aquela inveja ingénua, mas incipiente, que começa a corroer a moral pela
adolescência. Metes então uma cunha para integrares a lista, consegues entrar na
lista, sentes pela primeira vez a vantagem da cunha e a alegria que te
proporciona. Depois será um ver se te avias.
Ao longo da vida, descobrirás professores com
facilidades junto de editores, médicos de família deveras amigos de comerciais
de propaganda médica, gajas boas de braço dado com porteiros horrorosos. O mundo à tua
volta começará a formar-se com rosto de mundo e descobrirás que sempre assim
foi, já Camões se lamentava. A bondade, a ética, a moral, esse palavrão que é a
deontologia, nunca trarão felicidade a ninguém, só dores de cabeça, e jamais te
facilitarão a vida, só gerarão dificuldades. No dia em que fores a um
restaurante, pedires a conta e te chegar pela boca do empregado o sussurro “a conta
está paga, aquele senhor pagou-a”, olharás para o bom samaritano que te acena
com a mesma satisfação com que deixarás o ego enlevar-se. Afinal és um tipo
socialmente relevante, até te pagam almoços. Jamais te ocorrerá que o almoço
foi pago com segundas e, por vezes, terceiras intenções. Não há almoços grátis, há permutas que levam o seu tempo
a serem saldadas. Mas nada disso tem interesse, o que importa é o momento.
Na tua
cabeça deixará de ser imoral oferecerem-te um bilhete para a Ópera na esperança
que depois ofereças tu uma boa crónica, o teu sentido crítico será amansado
como se amansam as bestas e nada te demoverá de seres um homem socialmente
íntegro, isto é, integrado, ou seja, como os outros, a fazer o que os outros
fazem, seja lá isso o que for, porque se o fazem é porque não deve estar mal. E se os outros fazem, por que não poderás tu fazer? Afinal, que relevância terá aceitares uns vouchers e umas t-shirts, uma
viagem para ver a bola, quando o apito é de ferro? Mas será? Na dúvida, sobrará
sempre suspeita. E a suspeita é uma realidade tramada, pois reside no
crepúsculo como uma incerteza, é e não é, foi e não foi, está mas não está,
dúbia, ambivalente, ambígua, a suspeita cola-se ao rosto como manchas de
velhice à pele. A não ser que consigas conquistar um lugar no pódio dos inimputáveis, aqueles cujo poder de influenciar é tanto quanto o de
decidir. Não são lobistas, como agora se diz, nem se reduzem à insignificância
da vetusta cunha, são o ponto mais alto de uma hierarquia onde raramente chega a
mão da justiça.
Há quem passe ao lado de tudo como se não vivesse neste mundo,
como se dentro do crânio não trouxesse um cérebro, como se no lugar dos
nervos tivesse ferro, há, não duvidemos, tipos para quem a moral se confunde
com os bons costumes. E os bons costumes, como sabemos, pouco têm que ver com o
bem, são força de hábito, são a mais velha justificação para todo o tipo de
avarezas, ganâncias, vícios de consciência que não incomodam que a não tem. A
única certeza que podemos ter acerca disto é que o mundo está cheio de pequenos
trafulhas, oportunistas para quem pedir um emprego para o filho a troco de
benesses é o mesmo que acender uma velinha pela saúde dos moribundos. Ó senhor doutor, não faria mal algum se... Este
recente episódio das viagens para ver a bola é só mais um do vastíssimo leque
de episódios onde a trafulhice rasteira ganha sentido de Estado, num país onde
se contam pelos dedos da mão aqueles que não teriam agido como agiram os
secretários exonerados. Ainda que, como já seria de esperar, andem para aí
todos a cantar de galo como se fossem exemplo a que se olhe:
2 comentários:
Tens razão, e o epiteto com que é designado esse sr. que já foi infelizmente ministro é bem arranjado. A força do 8mau) hábito é neste país a grande lei. Inventam-se termos como a famosa "cunha" que mais não é que fétida corrupção no aparelho do estado. O problema é que é socialmente aceite, sem censura de espécie alguma. Confronto-me com situações dessas demasiadas vezes no dia-dia, perco essas lutas quase todas, e vejo que o problema não tem diminuído ao longo destes anos. A luta simples por alguma dignidade, por alguma saúde e limpeza, é algo que necessitamos fazer. É um exercício de cidadania necessário onde a maioria dos cidadãos encolhe os ombros, assobia para o lado desde que haja uns caracóis e uma bjecas frescas "tásse bem", a porra é que se está. Estou também curioso para ver a acusação que o MP irá desencantar, palpita-me que será uma coisa do tipo; "á lá Sócrates"
A ver vamos. Entretanto, a SIC vai abrindo jornais da tarde e da noite com as mesmas peças há 3 dias seguidos. As mesmas imagens, o mesmo discurso, numa repetição que não pode deixar de gerar desconfiança. O rosto de desdém do Miguel Sousa Tavares no jornal da noite ao chamar "peça" a uma coisa que tinha acabado de ser exibida diz tudo. A operação desgaste está em marcha. De fora, até dá um certo gozo observar a miséria moral disto tudo. Mas depois um tipo acha-se dentro, acaba sempre por ser atingido, e o gozo transforma-se em asco.
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