Entre toda a quinquilharia que tem vindo a lume arrastada
pelo centenário da Revolução Russa de 1917, dois livros de Simone Weil (n. 1909
– m. 1943), publicados quase em simultâneo, atraem-nos o foco para o essencial,
até pela crítica da União Soviética concebida numa fase de terríveis conflitos
internacionais que apelariam mais a sentimentos de simpatia pela Revolução do
que de antipatia. Sucede que no pensamento de Simone Weil tais sentimentos
foram ultrapassados pelo exercício de uma reflexão crítica autónoma e, acima de
tudo, expurgada de qualquer engajamento colectivo. De origem judaica, próxima
do comunismo antiestalinista, militou no movimento anarquista, chegando a
alistar-se numa milícia da Coluna Durruti no decorrer da Guerra Civil
Espanhola. No entanto, se o sindicalismo revolucionário exerceu forte
influência nos seus escritos de filosofia política, menos influência não terá
exercido um Cristianismo de tipo místico de que se aproximou sem nunca chegar a converter-se.
No prefácio a Nota Sobre a Supressão Geral dos Partidos
Políticos (Antígona, Julho de 2017), texto breve redigido numa fase final da
vida, pela primeira vez publicado na revista La Table Ronde (Fevereiro de 1950),
Júlio Henriques sublinha o modo como a tradição anarquista e as ordens
monásticas inspiram, nesse texto, uma negação dos partidos como forças do bem.
Tais fontes concorrem na obra de Weil para uma concepção do mundo algo
pessimista que situa a existência humana numa experiência do sofrimento e da
humilhação. Esta concepção é deveras evidente nas Reflexões Sobre as Causas da
Liberdade e da Opressão Social (Antígona, Junho de 2017), iniciadas com uma
crítica do marxismo da qual resulta um completo esvaziamento da palavra
revolução: «A palavra revolução é palavra em nome da qual se mata, pela qual se
morre, pela qual se enviam para a morte as massas populares, mas que não possui
qualquer conteúdo» (p. 33). A prová-lo, para a autora, está a «Revolução Russa,
que, após haver efectivamente conseguido fazer desaparecer uma certa forma de
opressão, assistiu impotentemente à instalação duma nova opressão» (p. 35).
Contextualizando, a dúvida reside em saber como pode o
homem libertar-se da opressão exercida pelo mundo do trabalho. Como pode o
homem ser livre? O problema da liberdade é aqui o tema essencial, na sua
articulação com as exigências do trabalho e com os factores de servidão que
limitam o ser humano pela força não de necessidades individuais, mas de lutas
pelo poder no seio das colectividades a que cada indivíduo pertence. O passo
que demos de uma economia primitiva para uma economia sofisticada foi o mesmo que
nos levou do bem-estar proporcionado pela satisfação das necessidades básicas
ao culto do supérfluo, estimulado por uma luta pelo poder, eufemisticamente apelidada de concorrência, que, em vez de emancipar,
humilha e oprime. «A Revolução Russa, graças a um singular conjunto de
circunstâncias, parecia, na verdade, trazer consigo algo de inteiramente novo;
os privilégios que veio suprimir não possuíam já, porém, qualquer base social,
com excepção da tradição; e as forças reais, a saber, a grande indústria, a
polícia, o exército e a burocracia, longe de haverem sido destruídas pela
revolução, atingiram, graças a ela, um poder desconhecido nos outros países»
(p. 64).
Traçado o diagnóstico, exige-se um Quadro Teórico Duma
Sociedade Livre. Simone Weil assume os contornos utópicos do seu quadro,
transportando-nos para uma hipótese de mundo onde os conceitos de “liberdade
perfeita” e de “liberdade autêntica” contrastam com a realidade imperfeita e de
aparências a que vamos submetendo paulatinamente as nossas vidas. À sua dimensão,
este livro ocupa-se dos pilares sobre os quais pode ser erigida uma sociedade
perfeita, isto é, de homens livres. Platão chamou-lhe República, Tomás Moro
deu-lhe o nome de Utopia. É ainda no campo do idealismo e do utopismo que se
colocam estas questões, apesar de estarmos perante uma autora a quem é
impossível negar falta de coerência entre pensamento e acção. Para compreender
as angústias dos operários, ela não se limitou a contemplá-los à distância. Trabalhou,
ela própria, como operária. E foi dessa experiência que trouxe a sua imagem do “operário
qualificado”, ser de uma civilização para a qual ainda olhamos como o burro olha para o palácio. Dotado de pensamento esclarecido e de reflexão metódica, este
trabalhador é o princípio base de uma sociedade constituída por homens livres e
fraternos. Não estaremos ainda aqui no domínio de um ideal de "homem novo" deveras estranho ao mundo em que vivemos?
Talvez para essa estranheza concorra uma organização
social baseada na chamada democracia representativa, a qual apenas promove os
partidos políticos enquanto máquinas de estupidificação do indivíduo. Na
simplicidade da Nota Sobre a Supressão Geral dos Partidos Políticos
vislumbramos, antes de mais, uma inigualável fé no pensamento enquanto
princípio libertador e emancipador do ser humano. Ora, na opinião da autora de
L’Enracinement, o carácter dos partidos opõe-se na sua génese ao pensamento
livre: «Um partido político é uma máquina de fabricar a paixão colectiva. // Um
partido político é uma organização construída de maneira a exercer uma pressão
colectiva no pensamento de cada um dos seres humanos que dele fazem parte. // A
finalidade principal, e, em última análise, a única finalidade de qualquer
partido político, é o seu próprio crescimento, e isto sem nenhum limite» (pp.
36-37) Estávamos na época dos totalitarismos, os sistemas de partido único
aniquilavam a possibilidade de debate, mas a rigidez interna dos próprios
partidos impunha aos seus membros uma concordância acrítica intolerável numa
sociedade livre. Weil afirma que o mecanismo de opressão típico dos partidos
foi introduzido pela Igreja Católica, comparando-os a pequenas igrejas
armadas «com a ameaça de excomunhão» (p. 59). O que fica por explicar é o lugar
da proibição numa sociedade livre. As proibições a que o texto alude são
conciliáveis com a liberdade reconhecida aos indivíduos para se organizarem
como bem entendem? À supressão dos partidos políticos não corresponderia uma diminuição
do interesse individual pela vida colectiva? E, em consequência, uma diminuição
do debate de ideias? Estaria melhor o mundo quando os partidos políticos não existiam?
Ou quando, em momentos históricos situados, foram, lá está, proibidos?
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