Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de Outubro de
1844, teve uma carreira militar bastante curta, viu-se obrigado a uma vida
isolada muito por razão das suas convicções, foi um compositor mediano, viajou
regularmente, a determinada altura viveu mesmo um intenso nomadismo mudando de
residência várias vezes, falhou como professor e com as mulheres, fracasso de
que é famosa a relação mantida com a fascinante Lou Salomé, viveu em busca de
uma liberdade que lhe deu cabo da saúde, manteve com a irmã uma relação
conflituosa, chegou a experimentar os apaziguamentos do ópio e a pensar no
suicídio, acabou por colapsar mentalmente pelos anos de 1889, vindo a falecer
no dia 25 de Agosto de 1900. É conhecida e por muitos citada a influência que
exerceu sobre o escritor norueguês Knut Hamsun (1859-1952), apesar do antigermanismo
do filósofo contrastar com o germanismo acirrado do romancista, a ponto de este
ter oferecido a Goebbels a medalha que recebeu por ocasião da atribuição do Prémio
Nobel da Literatura em 1920. Os noruegueses não lhe perdoaram. Hamsun foi ostracizado
após a II Grande Guerra, morrendo num asilo com a acusação de traidor à pátria
a pesar-lhe sobre os ombros.
É difícil
não pensar em Nietzsche depois de sermos apresentados a Johan Nilsen Nagel, a
personagem central de Mistérios (Cavalo de Ferro, Setembro de 2013). Publicado
em 1892, Mistérios transporta-nos para uma pequena cidade costeira da Noruega
no ano de 1891. É a essa cidade que chega um homem misterioso no dia 12 de
Junho, em pleno Verão. Nagel está prestes a completar 29 anos, tem ombros
largos, veste de um modo algo excêntrico, comportando-se de acordo com a indumentária.
Também ele tem uma irmã, a qual não participa nesta ventura senão pela
ausência, também ele é um músico sofrível, diz-se natural de Finmark, apesar de
ter vivido em vários locais, apresenta-se como agrónomo, embora a páginas
tantas lhe fuja a boca para a verdade: «Sou um filósofo que nunca aprendeu a
pensar» (p. 136). Verdade? Será avisado acreditar nas suas confissões? Tudo em
Nagel nos deixa em estado de alerta, ele é um homem sob suspeita, nós somos
como os habitantes da cidade onde se instala, «cidadezinha de treta» habitada
por gente coscuvilheira e hipócrita. As suas palavras denotam um claro desprezo
pela humanidade em geral: «as pessoas eram sempre as mesmas; a mesma
vulgaridade, a mesma hipocrisia» (p. 255). Não obstante, manifesta uma estranha
generosidade para com os mais fracos. Uma generosidade que vai muito além da
caridadezinha desprezível dos hipócritas, uma generosidade de tipo kantiano,
isto é, que não procura ser recompensada senão por ser ela mesma a sua própria
recompensa.
São objecto da sua generosidade o homem a quem todos chamam por desprezo
de Anão e Martha Gude, uma quarentona solitária que vive nas margens da cidade
e a quem Johan Nilsen Nagel chegará a pedir casamento. Mas por que o faz? Está
apaixonado pela lindíssima Dagny Kielland, uma jovem loira capaz de levar
qualquer homem à loucura e ao suicídio: «Na minha opinião, a menina Kielland é
tão provocadora que se sentiria extremamente lisonjeada se mais homens —
quantos mais, melhor —, incluindo eu, pusessem termo à vida por sua causa» (p.
128). Não foi o que aconteceu ao desgraçado Karlsen? Mas Nagel não é como
Karlsen. Ou será? Nagel não é um homem vulgar. Ou será? Ele comporta-se
estranhamente, ora apático, ora eufórico, perde-se em longos monólogos a falar
consigo mesmo, acusam-lhe contradições e incoerências. Por exemplo, como quando
se refere a Liev Tolstói. Num momento, coloca-o a par de Jesus Cristo e de
Immanuel Kant entre os grandes homens que a humanidade produziu. Num momento
seguinte, em diálogo com a menina Kielland, diz não apreciar muito o escritor
russo. Para logo de seguida se esquivar a considerações sobre o autor de Guera
e Paz afirmando não se lembrar de ter falado com a menina Kielland sobre
Tolstói. Mas falou, sabe que falou, e falou como se fosse Nietzsche a falar: «Os
homens de letras conversam bem, mas os tubarões do intelecto, os super-homens,
os líderes espirituais montados a cavalo têm de parar e de procurar nas suas
mentes quando o nome de um homem «verdadeiramente» grande é mencionado» (p.
43).
Também Nietzsche, perante a mediocridade reinante, poderia ter gritado:
«revolta-te contra esta rectidão arrogante!» (p. 77). Ou exclamar em pura
euforia: «Abaixo a tristeza!» (p. 161). Ou, mais relevante ainda, concluir num
sobressalto de amargura e de confusão: «O que é que as pessoas sabem realmente
sobre a vida? Inserimo-nos na linha, seguimos o padrão estabelecido pelos
nossos mentores. Tudo se baseia em assunções, e até o tempo, o espaço, o
movimento e a matéria não passam de suposições. O mundo não tem nenhum novo
conhecimento a fornecer, aceitando simplesmente o que lá está» (p. 242).
Descrente, com tendência a sentir-se deprimido, Nagel pode estar louco. A
determinada altura, uma visita surpreendente sugere isso mesmo. Nagel é louco.
A sua loucura consiste, antes de mais, na ausência de filtros entre o que pensa
e diz. Mesmo quando aparenta calculismo, simula um domínio das situações que na
realidade não possui. No fundo, a sua loucura resulta de uma nítida e lúcida
consciência do mundo e do lugar que a maioria das pessoas nele ocupa. A pequena
cidade costeira da Noruega é apenas o microcosmo de uma imensa massa humana. À
margem, fica o quarto número 7 onde Johan Nilsen Nagel se instalou quando ali
aportou no dia 12 de Junho de 1891.
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