Há dias, assisti boquiaberto à indignação de uma senhora,
cujo nome não recordo, cujas funções desconheço, relativa a dois blocos de
actividades à venda no mercado. Não sabia que a polémica havia nascido algures no
ninho da estupidez, ou seja, nas redes sociais, pelo que fiquei curioso e fui
verificar com os meus próprios olhos os objectos de queixa. Achei piada aos
blocos e acabei por destacá-los em livraria. Não duraram meia hora.
Venderam-se. A polémica, concluí, como geralmente acontece com todas as
polémicas em torno de livros, sejam elas sobre direitos à privacidade, opiniões
sobre o Alentejo ou estereótipos de género, teve o mesmo resultado de sempre:
aguçar a curiosidade que leva à compra.
Entretanto, um humorista português desmontou a polémica fazendo umas graçolas com o estranho caso dos blocos de actividades. Afinal, não havia razão alguma para tanto alarde. Não passava tudo de uma tempestade em copo de água. Refira-se, a título de curiosidade, que os blocos da Porto Editora não
são caso único. A Editorial Presença tem há muito o Livro de Atividades para
Meninos e o Livro de Atividades para Meninas, assim como um livro com 2001
Autocolantes Para Meninos e 2001 Autocolantes Para Meninas. Há ainda os livros
de actividades com piratas e os livros de actividades com princesas. Podíamos
acrescentar a isto os livros de Histórias para Rapazes e Histórias para
Raparigas, ou, como propões a Editora Educação Nacional, O Meu Livro de Contos
Para Meninas e O Meu Livro de Contos Para Meninos. O delas tem uma fada com um
coelho na capa, o deles tem um bombeiro com um cão. Na mesma editora
encontramos, ainda, O Meu Livro de Histórias de Aventuras (para eles) e O Meu
Livro de Histórias Mágicas (para elas). Portanto, os rapazes que aprendam com
aventuras, as raparigas que cresçam com magia.
Desde que me conheço a trabalhar
numa livraria que sempre vi disto, a novidade está nestas novas crises histéricas
colectivas e na excitação das massas. A estupefacção de que falava a notícia do
Público deixa-nos, ela mesma, estupefactos. Ou as pessoas têm andado a dormir,
ou interessaram-se subitamente por estes temas, ou a estupidificação geral
atingiu valores inimagináveis. Tendo para a última das hipóteses. O que há de
inimaginável nos níveis de estupidificação é a atitude de quem deveríamos
esperar ponderação e sensatez, para não exigir alguma inteligência.
A
recomendação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género não é apenas
abstrusa, releva de um perigo em que estamos atolados e que tem as suas causas
como terá as suas consequências. As causas são o desinvestimento, neste nosso
novo mundo, na formação de massa crítica. Uma sociedade de tecnocratas dá
nisto, as pessoas deixam de parar para pensar e respondem cada vez mais automaticamente
aos estímulos. O conhecimento, a investigação, a ponderação, ficam para os burros, para os marginais, para os incompetentes, levam à hesitação e à dúvida, defeitos das máquinas produtivas que pretendemos
para este novo mundo. Precisamos de autómatos formatados para o sucesso, dispensamos humanos preparados para a dúvida. As
consequências a esperar deste novo paradigma são por de mais previsíveis, facilidades na manipulação da opinião pública, controlo das massas, o reino do
logro e da mentira metamorfoseado na sua versão de pós-verdade.
Ninguém
esperaria que na Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género houvesse
alguém com o sentido de humor do Ricardo Araújo Pereira, mas esperar-se-ia um
mínimo de sentido de estado. Arrastados pelo domínio da popularidade, os
senhores da Comissão recomendaram a recolha dos Blocos. Não é algo de inédito
na democracia portuguesa, mas é deveras preocupante. Mais preocupante por
ter esta recomendação nascido como nasceu, impelida por uma tendência opinativa
sem qualquer fundamento, apoiada apenas numa polémica de redes sociais. Estes
sinais são preocupantes e obrigam-nos a uma atenção redobrada, pois, como
afirma Paul Tabori «A estupidez dói, de facto; simplesmente, é raro que
incomode o estúpido».
10 comentários:
já não há paciência para estas vagas de indignações precoces...o resto é como muito bem apontas.
O curioso é tratar-se quase sempre de indignações confortáveis, daquelas que não implicam rosto nem rua.
Claro. O único esforço é uns tantos cliques no teclado. Isto não é nada de novo, os meios é que o são. E o poder que acabam por exercer.
Isto foi tudo tão estúpido, tens toda a razão. Eu acho também estúpido haver cadernos de atividades para crianças dos 4-6 anos, deixem-nos pintar e desenhar livremente, e brincar, subir às árvores, jogar à apanhada ou à bola. Aconselhar a retirada do raio dos cadernos é muito mau, há gente perigosa por aí! Saúde e bjs para toda a tribo
A propósito de gente perigosa, espreita lá este artigo estúpido: http://expresso.sapo.pt/blogues/bloguet_economia/blogue_econ_aurora_teixeira/2017-08-25-Censura-ou-servico-publico-
Excelente, como sempre. Saúde!
Maria João, só li os dois primeiros parágrafos. Depois de ter lido «princípios económicos», não consegui continuar.
Obrigado Fernando.
Claro Henrique, ela está a tratar crianças de 4-6 anos como consumidores.
Ponto 1: muito questionável a existência de cadernos de actividades para crianças de 4-6 anos.
Ponto 2: uma editora tão profundamente envolvida e conotada com o universo escolar, com esse peso e responsabilidade (sim, tem-na, quer queiram quer não) não deveria promover a discriminação com base no género (como, de resto, a constituição estipula), tal como não pode promover o racismo, a xenofobia, etc.
Ponto 3: neste contexto, o Estado tem um papel regulador, sim. Chamar a isso censura não direi que é perigoso, mas é, vão desculpar-me, um disparate.
Ponto 4: aventuras e magia para todos!
Ponto 1: porquê? Qual o mal? Já folhearam esses cadernos ou blocos de actividades? São bem giros e divertidos. Qual a alternativa, não podendo as crianças andar pelas ruas e pelos rios como eu pude? Com pais ausentes, fechadas em casa, fazem o quê? Computador? Televisão?
Ponto 2: a responsabilidade da PE é exactamente a mesma das outras editoras e o fim não é diferente: facturar. Blocos de actividades para meninos e meninas não é discriminação com base no género, assim como o não é casas de banho para homens e mulheres, lojas de vestuário feminino e masculino, etc, etc, etc. Entremos nas lojas de artigos para bebés, é espantosa a discriminação de género nesses recintos. Mas mais graves que essa discriminação é julgarmos que ela não é natural como a nossa sede. Mulheres e homens não são iguais, por mais voltas que demos em sentido contrário. A diferença começa, desde logo, no próprio corpo. E ainda bem que são diferentes. O pior que podemos fazer se quisermos lutar contra todas as formas de discriminação é negar as evidências. Não vejo mal nenhum em vestir a menina de cor-de-rosa e o menino de azul, assim como não vejo o inverso. Talvez ficassem todos melhor de preto.
Ponto 3: pela parte que me toca, não falei em censura. Acho simplesmente muito perigosa, e perniciosa, esta tendência para tomar decisões políticas com base em marés de opinião pública.
Ponto 4: igualmente.
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