quarta-feira, 16 de agosto de 2017

SAM SHEPARD (1943-2017)


Sam Shepard marcou-me, sobretudo, como autor de Crónicas Americanas, um livro por cá publicado pela extinta Difel. Citei-o aqui
Foi um excelente actor. Dei por ele a primeira vez em Days of Heaven (1978), de Terence Malick. A última, foi em O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford (2007), belíssimo western de Andrew Dominik. 
Assinou vários argumentos para filmes, entre os quais o de Paris, Texas (1984), de Wim Wenders. 
Citei-o aqui, há coisa de sete anos, a propósito de matéria essencial. 
Em 2008, publiquei na revista Big Ode um conjunto de estórias a que dei o título de Crónicas Europeias. Não faltou a epígrafe de Sam Shepard. 
É mais uma referência que desaparece. Tem sido assim nos últimos anos, suponho que deva ser assim nos próximos. Atravessando o Paraíso é um título pertinente, dadas as circunstâncias:

CONTIGO NÃO HÁ DISTÂNCIA

   Não consigo lembrar-me como é que era antes de te conhecer. Eu era sempre assim? Lembro-me de mim perdido. Quanto a isso nenhuma dúvida. Deambulando. De nada em nada. De alucinada em alucinada. Permanecendo, por vezes, apenas o tempo suficiente para compreender que o desnorte delas era mais pronunciado do que o meu. Pelo menos é assim que elas me aparecem. Mas não me lembro de estar assim nervoso como estou agora; assim em frangalhos. Observava-as muito de longe, muito à distância: pedradas, ensaiando banhos de esponja nos seus lavatórios; aparando bolas pretas de haxixe com lâminas de barbear; movendo-se como rainhas em câmara lenta. Depois, transformavam-se em raparigas em quintais de já lá vai muito tempo, desfazendo-se em risinhos e aninhando as longas pernas debaixo do aconchego dos seus corpos: a maneira como se afundavam sobre os seus macios calcanhares e depois meneavam muito o cabelo como cavalos sacudindo as caudas.
   Mas contigo não há distância. Todos os movimentos que fazes, sinto-os como se viajasse na tua pele; as tuas espreitadelas da janela, como se tu estivesses completamente sozinha e sonhando num outro tempo qualquer. De nada me serve dar aos braços a dizer adeus. Agora, está tudo ao contrário.

15/5/95 (SCOTTSVILLE, VIRGINIA)


Sam Shepard, in Atravessando o Paraíso, trad. José Vieira de Lima, Difel, Fevereiro de 1997, p. 85.

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