terça-feira, 29 de agosto de 2017

TATUAGEM PESSOAL

A Revolução raspou e lavou a tatuagem pessoal, deixando a descoberto tudo o que aí havia de tradicional e de tribal, tudo o que tinha sido recebido com o leite materno e não foi dissolvido pela razão crítica por causa da sua fraqueza e da sua cobardia. Em poesia, Jesus nunca está ausente. E, na idade da indústria têxtil mecanizada, o manto da Virgem é o tecido poético mais popular.
   Pôs-se de lado a maioria dessas recolhas poéticas, sobretudo as das mulheres. Aqui, realmente, não se pode dar um passo sem a ajuda de Deus. O mundo lírico de Akhmatova, de Zvetaeva, de Radlova e outras poetisas, autênticas ou pretensiosas, é extremamente reduzido. Embaraça a própria poetisa, há um desconhecido de chapéu ou alguns portadores de espinhos e, inevitavelmente, Deus, que não tem qualquer característica especial. Deus é uma terceira pessoa, muito cómoda e muito transportável, para uso doméstico, um amigo da família, que preenche de vez em quando os deveres de um ginecologista. Como é que este indivíduo, muito mais jovem e encarregado de tarefas pessoais, muitas vezes aborrecidas, por parte de Akhmatova, de Zvetaeva e das outras, pode, nos seus momentos de ócio, dirigir os destinos do universo, isso é simplesmente incompreensível. Para Chkapskaia, tão orgânica, tão biológica, tão ginecológica (o talento de Chkapskaia é real), Deus possui alguma coisa de um intermediário ou parteira, isto é, tem todos os atributos de uma má-língua toda-poderosa. Se uma nota subjectiva pode ser aqui autorizada ou consentida, diríamos de boa vontade que esse Deus feminino, de largas ancas, não se mostra muito impotente, mas é muito mais simpático que o pintainho chocado pela filosofia mística lá das estrelas.
   Como não chegar, finalmente, à conclusão que a cabeça normal de um filisteu educado é um caixote onde a História lança de passagem os restos e os detritos das suas diversas realizações? Vemos aí o Apocalipse, Voltaire e Darwin, o Livro dos Salmos, a filologia comparativa, a tábua de multiplicação e o círio. Uma mistura vergonhosa que faz lamentar a ignorância do homem das cavernas. O homem, «o rei da Nazaré», que deseja infalivelmente «servir», remove a cauda ao ouvir a voz da sua «alma imortal»! Examinada melhor, a pretensa alma revela-se como um «órgão» muito menos perfeito e menos harmonioso que o estômago ou um rim: «a imortal» possui inúmeros apêndices rudimentares e bolsas cheias de toda a espécie de humores gangrenosos, causa contínua de pruridos e de úlceras espirituais. Por vezes, é verdade, estes pruridos libertam-se em rimas, que são então apresentadas como poesia individualista e mística, agora impressa em «plaquettes».

Léon Trotski, in Literatura e Revolução, trad. Serafim Ferreira, Editorial Fronteira, Dezembro de 1976, pp. 44-45.

3 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Eu até acho que o Henry Miller deveria estar numa estante "para homens" (e se calhar a Anaïs Nin também) e a Margarida Rebelo Pinto ( e o Pedro Chagas Freitas) noutra só para mulheres, de preferência "loiras".

Aliás nas livrarias todos os livro deveriam estar separados por público alvo consoante o género: homens, mulheres, trans e homo e hermafroditas.

Claudia Sousa Dias disse...

Eu fui das que andei a dormir durante quarenta anos de putativa democracia...nem sonhava que havia tal diferenciação.

hmbf disse...

:-)