O meu interesse pela obra de Antonio Gramsci (n. 1891 –
m. 1937) data do final da década de 1990, quando nos números zero e zero um da
revista Abril em Maio, publicados na viragem do século XX para o XXI, se
divulgou um interessante ensaio do autor italiano intitulado Literatura
Popular, no qual se podem ler as seguintes palavras: «Os intelectuais não vêm do
povo, embora acidentalmente um ou outro seja de origem popular, não se sentem
ligados a ele (à parte a retórica), não conhecem e não sentem em si as suas
necessidades, as suas aspirações, os seus sentimentos difusos; são, relativamente
ao povo, algo separado, sem alicerces, isto é, uma casta, e não uma
articulação, com funções orgânicas, do próprio povo» (trad. Ana Campos). Esta e
outras matérias associadas desta sempre me interessaram, nomeadamente pela
necessidade de esclarecer uma aparente incompatibilidade entre raízes sociais
populares e trabalho intelectual. O próprio Gramsci, que não era exactamente um
homem do povo, rejeitava essa incompatibilidade.
Foi o quarto de sete filhos de
um casal conturbado. Acusado de peculato, o pai de Gramsci acabou preso quando
este ainda era jovem. A mãe, filha de pequenos proprietários, sabia ler e escrever,
pelo que sempre investiu na educação de Antonio. Embora frágil de saúde, com
uma malformação bastante limitadora, sofrendo de problemas físicos ao
longo de toda a vida, Antonio Gramsci começou a trabalhar muito cedo para ajudar no
sustento da família, revelando-se igualmente um aluno brilhante. Em 1911, partiu para Turim com uma bolsa de estudo. Leitor de Marx desde os tempos do liceu,
interessou-se pelo socialismo e aproximou-se do universo operário. Problemas
financeiros e de saúde dificultam-lhe os estudos, ao mesmo tempo que se dedica
cada vez mais à intervenção política colaborando com textos para os jornais Il
Grido del Popolo e Avanti!. Textos políticos, críticas e crónicas,
granjearam-lhe reputação. Envolvido em projectos de educação e organização do
proletariado de Turim, entusiasmou-se com as notícias que chegavam da Rússia
sobre uma Revolução que havia destronado o Czar. Dois anos depois, fundava com
alguns camaradas o jornal L’Ordine Nuovo, o qual viria a tornar-se o primeiro
órgão oficial do Partido Comunista Italiano.
Enviado à Rússia como
representante do partido junto da III Internacional, Gramsci conheceu a sua futura
mulher no sanatório Serebrjani Bor. Do casamento com a jovem violinista Julia
Schucht resultaram dois filhos, o segundo dos quais Gramsci nunca chegou a ver.
O advento do fascismo em Itália levou-o à prisão, apesar de ter sido
eleito deputado da Câmara em 1924. A viver com os filhos na Rússia, Júlia deixou de enviar notícias. Crítico da ascensão de Estaline ao poder, mais próximo das
teses de Trotsky, Gramsci acabou por sentir-se vítima da perseguição fascista e do
abandono do Comité Central russo. Encarcerado, só dois anos depois de estar
preso teve autorização para ler e para escrever. Deveras debilitado, permaneceu sem
tratamentos. Apesar disso, consegui redigir dezenas de Cadernos onde fixou,
tanto quanto lhe foi possível, as suas ideias. O optimismo da vontade pode ter vencido
o pessimismo da inteligência, mas o autor de Lettere dal carcere acabaria por
sucumbir dois dias depois de ter sido libertado a 25 de Abril de 1937.
Dos seus
escritos há a destacar, antes de mais, um conceito bastante lato de
intelectual: «Todos os homens são intelectuais, podemos afirmar; mas não é
verdade que todos os homens desenvolvem na sociedade a função de intelectuais
(assim como pode acontecer que qualquer pessoa cozinhe dois ovos ou faça um
remendo num casaco, sem por isso ser considerado um cozinheiro ou um
costureiro)». Com esta perspectiva, a “casta dos intelectuais” alarga-se e
deixa de estar confinada a uma ou duas ou três actividades profissionais.
«Todos os homens, resumindo, fora da sua profissão, exercem uma actividade
intelectual qualquer, ou seja, eles são “filósofos”, artistas, homens de gosto,
participam numa concepção do mundo, seguem conscientemente uma determinada
linha moral e assim contribuem para sustentar ou para alterar uma concepção do
mundo, ou seja, para suscitar novas formas de pensamento». Libertar o
trabalhador rural e o proletário de um estigma, o da sua limitação ao esforço
muscular e nervoso, é um princípio nobre, mas igualmente nobre seria dotar
hoje, tanto quanto possível, o trabalhador intelectual de músculo e de nervo.
Um dos grandes problemas na actualidade é o de uma certa carência nos intelectuais
à pressão chamados ao exercício opinativo. Ouvimo-los a falar de florestas e
fogos e logo nos ocorre que tão bem ficariam de forquilha e machado nas mãos a
tratar materialmente do objecto que cuidam intelectualmente, ouvimo-los a
debater condições laborais e logo os imaginamos de colete e barrete aos balcões
do McDonald’s, ouvimo-los discutir acções de luta dos enfermeiros e desejamos
vestir-lhes uma batina branca, colocá-los entre moribundos numa ala hospitalar,
pedir-lhes que algaliem o enfermo. Há cem anos, talvez não fosse tão
urgente este tipo de intervenção. Impunha-se conquistar para as classes de trabalhadores oprimidos e
humilhados uma certa dignidade humana e social, reconhecer-lhes cultura, torná-los
agentes da transformação cultural. Se havia propósito na Revolução, era o de que
a cultura não fosse um privilégio. Talvez caiba agora à Revolução combater o
pedantismo e o sectarismo, o filisteísmo e o fundamentalismo, já não apenas
através do desenvolvimento do intelectual, mas de uma reaprendizagem motora que
permita ao opinion maker, ao politólogo e afins assimilarem uma nova cultura
«intimamente ligada a uma nova intuição da vida», até que se torne uma nova
forma de sentir e de ver a realidade.
A pós-verdade é, assim, um enorme desafio
que temos pela frente, nomeadamente se quisermos dar sentido a um conceito
de cultura mais profundo e exigente do que aquele que nos procuram vender: «A cultura é algo de muito diferente. É organização,
disciplina do próprio eu interior, é domínio da própria personalidade, é
conquista da consciência superior, através da qual se consegue compreender o
próprio valor histórico, a própria função na vida, os direitos e os deveres». Ora, sem que se confunda com belas artes nem com pacotes de valores a granel, a cultura é disciplina, autodomínio, conquista da consciência. Sócrates já dizia mais ou menos isto, talvez tenha sido por isso que acabou envenenado. Massificado, o veneno de hoje é a completa ausência de uma consciência alicerçada na prática. Estilo, exibicionismo, teoria, garantem profissão e sucesso. O que de fundamental falta nisto é a cultura do outro, abertura à experiência e acção, vontade de aprender através da prática do conhecimento. Falar de "filosofia da praxis" é um tanto ou quanto limitado. Carecemos mais de uma praxis da filosofia, tão arredada que ela anda dos nossos dias, no seu original amor ao saber e no desenvolvimento do espírito crítico.
Nota: parte deste texto surgiu em alta voz, enquanto lia pelas
praias da Costa Vicentina o livro A Cultura, os Subalternos, a Educação, de
Antonio Gramsci, colectânea de textos diversos introduzidos e traduzidos por
Rita Ciotta Neves, Edições Colibri, 2.ª edição, Junho de 2017. A imagem ao meio pode não parecer, mas tem tudo que ver com isto.
2 comentários:
Tenho estado a ler "Pensamento e comunicação", correspondência de Bertrand Russell, consequentemente a imagem central fez para mim todo o sentido Henrique.
Excelente. :-)
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