quarta-feira, 4 de outubro de 2017

UM POEMA DE MANUEL DE FREITAS

LISBOA, HORA ZERO

Eis o fim do mundo, amiga.
Tudo o que não repousará na lousa fria
que lembra limpa os teus gestos,
sob terra e voz. Esmorecem aqui
os rudes intentos do Inverno
- e nem uma canção sobrará,
se os deuses preclaros puderem.

Foi um cansaço de versos
o teu nome derradeiro, e despeço agora
essa música que parou no sangue
e os lugares inconclusivos
que à beira do nada se alimentaram
dela, de ti tão-só, extremamente.

Direi por fim que não há resgate
para o abolido corpo das horas
e que a «cultura», o que assim chamamos,
é um reino inabitável
onde nos não veremos mais.

Há asas de rancor nas coisas,
corredores de medo que esperam
em vão pelos teus passos. Mas foi sempre
assim, esta morte. No punhal dos dias
te encontrei, no punhal dos dias
te abandono agora. E regresso,
se não ao silêncio pelo menos à certeza
póstuma de que os oficiantes de aqui
fumam cigarros diferentes dos meus.

É tudo uma questão de sombra,
demorada e simples.
E sobre o Tejo uma gaivota morta
diz muito melhor do que nós a irrisão
que abençoou o meu mais mudo apelo.

É tua, esta coroa de papel manchado
- o país em que inventei sem lágrimas
o teu nome verdadeiro, para me enamorar
ou quase de águas poluídas e poder, enfim,
desaparecer das páginas, escondido na paisagem

de um mar que foi apenas a vontade
de o ser, mas não muita.


Manuel de Freitas, in Game Over, Alambique, Março de 2017, pp. 104-105.

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