Já não se escrevem cartas, ou escrevem-se tão poucas que
fica difícil imaginar o que possa ser a literatura epistolar no futuro. Agora
escrevem-se e-mails, o mais despachados possível e num linguajar de meter
vergonha. E enviam-se sms, recados em post-it, brevíssimos, corriqueiros,
abafados. Aquela coisa da obra epistolográfica parece ter entrado em vias de
extinção, e com ela uma certa autenticidade. Luiz Pacheco, numa das milhentas
cartas por si assinadas, afirma que «numa terra de lápis-azul, a epistolografia (género menor,
concedo) é um dos mais livres, talvez o único livre». Talvez, mas não apenas
«numa terra de lápis-azul». Onde a liberdade parece absoluta, pelo menos no que
tocaria a escrever/dizer, a autocensura toma
as rédeas. A carta exige um compromisso que o e-mail desautoriza, como
recentemente se tem visto. À primeira publicação, a dúvida instala-se como um
escudo protector: verdadeiro ou falso. O e-mail, a mensagem electrónica,
permite à caligrafia e à assinatura uma protecção que a carta não dava. A carta
expunha, estabelecia um contrato indelével entre o autor e o conteúdo. É
verdade que se forjaram cartas, é verdade que estes se fizeram passar por
aqueles. Mas nesse tempo em que a pós-verdade nem miragem era, a mentira configurava calúnia, não apenas
manipulação. Talvez fosse mais fácil desmascarar o fantasma.
Não cabendo aqui
explorar tais mecanismos detectivescos, certo é que o quase completo desaparecimento
das cartas levou consigo algo de muito valoroso. Refiro-me
já não apenas à liberdade mencionada por Luiz Pacheco, mas a um elo confessional,
com qualquer coisa de sagrado, entre remetente e destinatário. Se a carta pode
ser queimada e o e-mail pode ser apagado, há algo que muda radicalmente a
ralação entre os correspondentes. Damos-lhe o nome de pausa dialogal, marcada pelo
tempo que demora entre leitura e resposta, o tempo de chegada, de partida, de
espera, um tempo que entre pergunta e resposta possibilita o pensamento, a
vida, oferece a possibilidade de acrescentar à conversa algo novo, vivido, experimentado. O carácter de urgência é outro, como se na carta o corpo físico de alguém
nos chegasse às mãos transportando cheiros, textura, pele, um corpo ausente por
via tecnológica, aqui transformado em pixel, caractere inolente, anódino, apenas
eco de ecos.
Ler hoje um livro como O Grilo na Varanda — Luiz Pacheco para Laureano
Barros (Correspondência, 1966-2001) pode ser uma experiência altamente
melancólica, tingida de uma nostalgia rameira que desconsola o leitor
desprevenido. Também pode ser uma experiência mitológica, como que empolgando
no íntimo do leitor a reconstrução de uma época extinta, diferente da actual, mais frenética, esvaziada, efémera. Para mais, a edição da Tinta-da-China foi enriquecida com um DVD do documentário de Paulo Pinto: Laureano
Barros, Rigoroso Refúgio. Belo título. Os dois objectos reaproximam-nos de um
mundo em ruínas. Por um lado, Laureano Barros (1924-2008), bibliófilo
empenhado, exilado na província, moralmente vertical, matemático, metódico, introspectivo.
Por outro, Luiz Pacheco (1925-2008), escritor libertino, editor empenhado,
crítico impetuoso, coleccionador de aventuras e desventuras. Ambos são hoje figuras excêntricas com a aura de impossíveis. A miséria material
em que Pacheco viveu grande parte da vida é conhecida, a faceta para uns
caricata, para outros insuportável, do deboche, da alcoolemia, do
desenrascanço, faz já parte da história portuguesa. O que aproxima estes dois é
que pode permanecer misterioso, pelo menos digno de especulação.
Se, por um lado,
a fortuna do bibliófilo sustentava a desgraça do escritor, podendo supor-se uma
relação interesseira entre ambos, por outro lado temos que ao fazer de Laureano
Barros o fiel depositário do seu espólio criativo, Pacheco confiou-lhe o que
por certo de mais precioso tinha além da Comunidade: «Preso, há tempo para
escrever. Ler. Meditar. São vantagens, que não troco pela vida (embora
atormentada) de estar com os restos da minha Tribo» (p. 91). A vasta correspondência
trocada entre 1966 e 2001 dá provas de uma cumplicidade, ainda que à distância,
a extravasar o mero interesse material. A «moralidadezinha católico-policial»
da aborrecida sociedade portuguesa de então ofereceu a Luiz Pacheco um confidente,
um suporte para a vida, aquele elo desinteressado que tanto rareia num mundo já
só movido por interesses, proveitos, vantagens ainda que quase invariavelmente
mesquinhas, corriqueiras, moralmente insultuosas: «Como sair disto? que fazer? uns
malabarismos, de efeito nem sempre gracioso para quem vê ou esperava outra
coisa, melhor. E para os palhaços do circo literário, que somos os que escrevem
por dever de sobrevivência, e porque já agora não sabem fazer outra coisa, a
esperança que os Amigos se lembrem de nós de quando em quando, nos julguem com
dureza e sentido das realidades, que não comunguem na Enorme Aldrabice que isto
é tudo. Logo: nos sirvam de amarras e de faróis» (p. 131).
Estas cartas
chegam-nos de um tempo que tenderíamos a dizer já não existir não fosse a
constatação diária de que a «negra sociedade salazaresca» perdura onde menos a
suporíamos, com outras metodologias, transfigurada, mas igualmente negra. O que
não perdurou é o que de mais precioso atestam as cartas, a intransigência na
verdade e na liberdade de que são exemplo autêntico tanto Laureano Barros como
Luiz Pacheco. Daí que ambos tenham acabado sós, como bem constata um dos
intervenientes no documentário de Paulo Pinto. Disso dão conta várias cartas,
num estilo ora comovido, ora galhofeiro, mas sempre inquestionavelmente
genuíno: «Você não faz ideia — ou faz? — o que lutei por esta casa,
este sol, este silêncio, este filho — tudo o que me resta da Irene, e há
numa carta sua, de há anos, uma interrogação a que não sei se respondi, ou só
os factos, depois: que era isso de eu ficar inteiramente só? mais ou menos
isto. É que eu nem tinha a vantagem da surpresa: sabia-a antes» (p. 120).
2 comentários:
Gosto muito de ler o que escreve, Henrique.
E hoje comento não porque goste mais do que das outras vezes em que nada digo mas, apenas, porque escreve sobre cartas em geral e sobre as do Pacheco em particular (gosto muito de tudo o que o Pacheco escreve).
Que nunca a vontade de escrever lhe falte.
Saúde.
Obrigado.
Saúde,
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