terça-feira, 3 de julho de 2018

O GRILO NA VARANDA


Já não se escrevem cartas, ou escrevem-se tão poucas que fica difícil imaginar o que possa ser a literatura epistolar no futuro. Agora escrevem-se e-mails, o mais despachados possível e num linguajar de meter vergonha. E enviam-se sms, recados em post-it, brevíssimos, corriqueiros, abafados. Aquela coisa da obra epistolográfica parece ter entrado em vias de extinção, e com ela uma certa autenticidade. Luiz Pacheco, numa das  milhentas cartas por si assinadas, afirma que «numa terra de lápis-azul, a epistolografia (género menor, concedo) é um dos mais livres, talvez o único livre». Talvez, mas não apenas «numa terra de lápis-azul». Onde a liberdade parece absoluta, pelo menos no que tocaria a escrever/dizer, a autocensura  toma as rédeas. A carta exige um compromisso que o e-mail desautoriza, como recentemente se tem visto. À primeira publicação, a dúvida instala-se como um escudo protector: verdadeiro ou falso. O e-mail, a mensagem electrónica, permite à caligrafia e à assinatura uma protecção que a carta não dava. A carta expunha, estabelecia um contrato indelével entre o autor e o conteúdo. É verdade que se forjaram cartas, é verdade que estes se fizeram passar por aqueles. Mas nesse tempo em que a pós-verdade nem miragem era, a mentira configurava calúnia, não apenas manipulação. Talvez fosse mais fácil desmascarar o fantasma. 
   Não cabendo aqui explorar tais mecanismos detectivescos, certo é que o quase completo desaparecimento das cartas levou consigo algo de muito valoroso. Refiro-me já não apenas à liberdade mencionada por Luiz Pacheco, mas a um elo confessional, com qualquer coisa de sagrado, entre remetente e destinatário. Se a carta pode ser queimada e o e-mail pode ser apagado, há algo que muda radicalmente a ralação entre os correspondentes. Damos-lhe o nome de pausa dialogal, marcada pelo tempo que demora entre leitura e resposta, o tempo de chegada, de partida, de espera, um tempo que entre pergunta e resposta possibilita o pensamento, a vida, oferece a possibilidade de acrescentar à conversa algo novo, vivido, experimentado. O carácter de urgência é outro, como se na carta o corpo físico de alguém nos chegasse às mãos transportando cheiros, textura, pele, um corpo ausente por via tecnológica, aqui transformado em pixel, caractere inolente, anódino, apenas eco de ecos. 
   Ler hoje um livro como O Grilo na Varanda Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001) pode ser uma experiência altamente melancólica, tingida de uma nostalgia rameira que desconsola o leitor desprevenido. Também pode ser uma experiência mitológica, como que empolgando no íntimo do leitor a reconstrução de uma época extinta, diferente da actual, mais frenética, esvaziada, efémera. Para mais, a edição da Tinta-da-China foi enriquecida com um DVD do documentário de Paulo Pinto: Laureano Barros, Rigoroso Refúgio. Belo título. Os dois objectos reaproximam-nos de um mundo em ruínas. Por um lado, Laureano Barros (1924-2008), bibliófilo empenhado, exilado na província, moralmente vertical, matemático, metódico, introspectivo. Por outro, Luiz Pacheco (1925-2008), escritor libertino, editor empenhado, crítico impetuoso, coleccionador de aventuras e desventuras. Ambos são hoje figuras excêntricas com a aura de impossíveis. A miséria material em que Pacheco viveu grande parte da vida é conhecida, a faceta para uns caricata, para outros insuportável, do deboche, da alcoolemia, do desenrascanço, faz já parte da história portuguesa. O que aproxima estes dois é que pode permanecer misterioso, pelo menos digno de especulação. 
   Se, por um lado, a fortuna do bibliófilo sustentava a desgraça do escritor, podendo supor-se uma relação interesseira entre ambos, por outro lado temos que ao fazer de Laureano Barros o fiel depositário do seu espólio criativo, Pacheco confiou-lhe o que por certo de mais precioso tinha além da Comunidade: «Preso, há tempo para escrever. Ler. Meditar. São vantagens, que não troco pela vida (embora atormentada) de estar com os restos da minha Tribo» (p. 91). A vasta correspondência trocada entre 1966 e 2001 dá provas de uma cumplicidade, ainda que à distância, a extravasar o mero interesse material. A «moralidadezinha católico-policial» da aborrecida sociedade portuguesa de então ofereceu a Luiz Pacheco um confidente, um suporte para a vida, aquele elo desinteressado que tanto rareia num mundo já só movido por interesses, proveitos, vantagens ainda que quase invariavelmente mesquinhas, corriqueiras, moralmente insultuosas: «Como sair disto? que fazer? uns malabarismos, de efeito nem sempre gracioso para quem vê ou esperava outra coisa, melhor. E para os palhaços do circo literário, que somos os que escrevem por dever de sobrevivência, e porque já agora não sabem fazer outra coisa, a esperança que os Amigos se lembrem de nós de quando em quando, nos julguem com dureza e sentido das realidades, que não comunguem na Enorme Aldrabice que isto é tudo. Logo: nos sirvam de amarras e de faróis» (p. 131). 
   Estas cartas chegam-nos de um tempo que tenderíamos a dizer já não existir não fosse a constatação diária de que a «negra sociedade salazaresca» perdura onde menos a suporíamos, com outras metodologias, transfigurada, mas igualmente negra. O que não perdurou é o que de mais precioso atestam as cartas, a intransigência na verdade e na liberdade de que são exemplo autêntico tanto Laureano Barros como Luiz Pacheco. Daí que ambos tenham acabado sós, como bem constata um dos intervenientes no documentário de Paulo Pinto. Disso dão conta várias cartas, num estilo ora comovido, ora galhofeiro, mas sempre inquestionavelmente genuíno: «Você não faz ideia ou faz? o que lutei por esta casa, este sol, este silêncio, este filho tudo o que me resta da Irene, e há numa carta sua, de há anos, uma interrogação a que não sei se respondi, ou só os factos, depois: que era isso de eu ficar inteiramente só? mais ou menos isto. É que eu nem tinha a vantagem da surpresa: sabia-a antes» (p. 120).

2 comentários:

Um Jeito Manso disse...

Gosto muito de ler o que escreve, Henrique.

E hoje comento não porque goste mais do que das outras vezes em que nada digo mas, apenas, porque escreve sobre cartas em geral e sobre as do Pacheco em particular (gosto muito de tudo o que o Pacheco escreve).

Que nunca a vontade de escrever lhe falte.

Saúde.

hmbf disse...

Obrigado.

Saúde,