Para a Matilde & para a Beatriz.
Como a biblioteca cá de casa não pára de crescer, fazendo
parecer que a casa não pára de encolher, surgiu a ideia de antecipar as
partilhas. Vou oferecer 100 livros às minhas filhas, na esperança de que possam
contribuir para a sua educação. Serão 100 manuais escolares de insuspeito valor
pedagógico. Começo por uma enciclopédia. É sempre útil e sinal de inteligência
trazer uma enciclopédia à mão, desde logo porque, não sendo muito inteligentes,
as pessoas munidas de enciclopédias sugerem um conhecimento e domínio das
matérias capaz de impressionar e convencer. Entre muitas e diversas, a mais
útil de todas é a “Antologia do Humor Negro” organizada por André Breton. Dizem
as boas línguas que o autor tinha mau feitio, queria o surrealismo todo
para ele. Que lhe tenha caído bem no estômago é o que desejamos. Por cá, o
livro saiu com a famigerada chancela das Edições Afrodite (um amor de
chancela). Ficai atentas, queridas filhas, desde logo aos tradutores. Tudo
gente de boa cepa: Aníbal Fernandes (é tanto o que lhe devemos que nem com
Estádio da Luz pejado de euros lhe pagaríamos), Ernesto Sampaio (autor do mais
belo livro de amor), Luísa Neto Jorge (tenha s, tenha z, uma poeta do… vocês
sabem do quê), Manuel João Gomes (traduziu os melhores), Jorge Silva Melo (vosso pai já lhe disse, com cara de parvo, que o admira como a
poucos)… Se os tradutores são janelas abertas para o mundo inteiro, topem o
mundo: Alfred Jarry (a seu tempo, hei-de apresentar-vos ao rei Ubu), Swift
(gigante entre anões), Rimbaud (aquele que escreveu tudo enquanto o diabo
esfrega um olho), Baudelaire (quando fomos a Paris, deixámos-lhe uma flor do
mal no túmulo), Poe (o do corvo e das pessoas enterradas vivas), Kafka (o das
pessoas transformadas em bichos), Isidore Ducasse (cuidado com este), Sade
(ainda mais cuidado com este), Duchamp (o da obra de arte para fazer xixi),
Lewis Carroll (este vocês sabem)… e tantos, tantos, tantos outros que deveis
explorar, visitar, com os quais podeis e deveis dialogar, porque tendes muito a
aprender sobre coisas tão básicas como ser-se livre, que é uma forma de se ser
maluco nesta sociedade que impõe que sejamos rectos à maneira de quem deixa a
parte terminal, posterior, do tubo intestinal, à disposição dos mandantes. Podeis
aqui aprender coisas elementares, mas esquecidas: «Os abetos que se usam
para fazer caixões são plantas de folha verde e perene» (Xavier Forneret). Só a
morte é para a eternidade, que entremos nela no melhor dos confortos é o desejo
dos parvos. O mais vulgar dos desejos. Mas falemos de matéria positiva, que a
procissão ainda vai no adro. Sobre um tal de Jean-Pierre Brisset, lembra o
arcebispo Breton: «A ideia mestra de Jean-Pierre Brisset é a seguinte: «A
palavra que é Deus conservou dentro das suas obras a história do género humano,
desde o seu dia primeiro; e, em cada idioma, a história década povo, com tal
segurança e tal irrefutabilidade que confunde os simples e os sábios». Para
começar, a análise das palavras permite-lhe estabelecer que o homem descende da
rã. Essa descoberta, que ele tenta legitimar e seguidamente explorar através de
um jogo de associações verbais de uma riqueza inaudita, vem corroborar, a seu
favor, a constatação anatómica de que «o sémen humano visto ao microscópio dá a
aparência de um charco de água cheio de girinos, cuja forma e aspecto os pequenos
seres existentes nesse mesmo sémen nos recordam, sem tirar nem pôr». Portanto,
que mais precisamos nós de saber para a vida acerca da vida senão que
descendemos de rãs, e que tudo isto que tanto nos faz sofrer não passa de um
charco onde chafurdam girinos, que somo nós?
1 comentário:
a literatura é uma mentira. dá-lhes a biblioteca inteira duma vez, dedica-te à pesca e a grandes caminhadas solitárias na floresta ou bosque (como fazem os homens inteligentes e íntegros), e deixa que elas descubram sozinhas a grande falácia humana!
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