quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

CORPO VESTÍGIO


Concluído o mestrado em Artes Plásticas na ESAD, e após algumas participações em colectivas no Centro Cultural de Cascais, na Galeria Sete (Coimbra) e na Casa Bernardo (Caldas da Rainha), Susana Quevedo (n. 1992) estreia-se individualmente com uma exposição intitulada Corpo Vestígio. A escolha da sala dos retratos no Museu José Malhoa não terá sido fortuita, já que os trabalhos apresentados partem de uma noção de auto-retrato que contempla tanto a fixação de um corpo como a deterioração a que o mesmo está sujeito pela passagem do tempo. A fotografia é a base a partir da qual essa mutação se exprime, ainda que sujeita a diversos tipos de intervenções que vão da justaposição de técnicas à própria destruição da imagem. Num primeiro conjunto de trabalhos, as fotografias surgem claras e evidentes, embora tenham sido submetidas a uma relação com os elementos clássicos essenciais (terra, água, ar, fogo) que exercem sobre o todo um processo de deterioração semelhante ao que observamos ao longo dos anos num corpo vivo. Restam fragmentos desse corpo, o qual surge retratado na sua fragilidade intrínseca:



Expostos entre as molduras mais ou menos anacrónicas que fazem parte do acervo museológico, somos desafiados a penetrar o olhar num segundo conjunto em que o negro predomina sobre a luz. Só olhando com atenção conseguiremos adivinhar formas de rostos, de corpos, bustos, perfis, ao fundo da escuridão. O efeito do carvão prensado sobre a impressão fotográfica é o de uma luz que se define a partir do interior do negrume, como se o negro fosse a placenta onde a imagem germina e nos chega ao olhar como um fantasma, vulto ambíguo, indefinido, indeterminado, que contrasta com a luminosidade dos retratos expostos no museu. É especialmente estimulante o diálogo estabelecido entre algumas destas imagens e os quadros que ao lado delas perduram como exemplos obsoletos de um tempo que passou, relevando-se dessa forma um diálogo entre passado e contemporaneidade cuja conclusão tende para uma ideia onde o apagamento e a fantasmagoria podem ser sinónimos de esquecimento, desmemória, ruína, desolação:



Por contraste à filosofia da perenidade, a arte assume aqui o efémero enquanto condição inerente à sua própria natureza. Nos trabalhos expostos em vitrinas esta condição surge sublevada pela própria destruição da imagem. Olhamos para as fotografias ali expostas como quem olha para pedaços de ruína, vestígios arqueológicos de um passado ao mesmo tempo ausente e presente. A própria submissão da impressão fotográfica a condições de destruição leva a crer numa complexa articulação do retrato com a consciência do tempo, como que pretendendo assumir-se uma impossibilidade de afixação determinada pelas transformações a que tudo quanto é orgânico está sujeito. Neste sentido, estes trabalhos também podem ser lidos como uma reflexão acerca do orgânico, entendendo-se pelos gestos violentos a que as imagens foram sujeitas um exercício de meditação acerca da violência que a Natureza exerce sobre um corpo vivo, violência essa que tende para a morte, para o apagamento, para a destruição absoluta desse mesmo corpo:



Corpo Vestígio termina com um vídeo onde alguns dos retratos expostos surgem em movimento, ou seja, na sua natural condição. Movimentos muito subtis (um dedo que mexe, a respiração de um corpo debaixo de um lençol, uma árvore abanada pelo vento) permitem-nos perceber que já não estamos na presença da fotografia enquanto corpo estático. As imagens seguem-se umas às outras sem nenhuma narratividade aparente, apenas enquanto testemunho de uma relação entre o espaço e o tempo que é definida pelo movimento. Este movimento é a marca última da transitoriedade, de uma fugacidade que reforça a vida entre as balizas da concepção e da morte. As linhas do corpo adivinhado por debaixo de um lençol (símbolo de luto e de abandono, de ausência e de perda), surgem contornadas no vídeo pela marca da respiração. Essa marca resgata o corpo de uma aparente existência marmórea, conferindo-lhe a vida que contrasta com o ambiente fantasmagórico presente na generalidade destes trabalhos:



Corpo Vestígio estará no Museu José Malhoa até dia 31/03/2019. Vale muito a pena descobrir o trabalho de Susana Quevedo: aqui.

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