quinta-feira, 14 de março de 2019

ÁRVORE EM FLOR


Ainda não fez um ano que enterrámos o corpo debaixo daquela árvore, calcando bem a terra e sinalizando o lugar com um pedregulho. Não consigo lembrar-me da árvore, apenas da sombra que fazia. Estava frio, eu tinha frio. Continha o choro como sempre contenho o choro, uma dor a querer saltar pela boca, uma dor presa à garganta, o peito a puxar a dor para baixo, uma dor colada às paredes do peito.
Emociono-me com facilidade, houve um tempo em que chorei muito. Quase tudo quanto em mim havia para chorar. Com o passar dos anos, emociono-me mais facilmente. Perdi defesas onde ergui muros. É com estranheza que constato o facto, parecendo-me até paradoxal que assim possa ser. Mas não importo nada.
Agora é tempo das árvores em flor, o corpo morto como que refloresceu na velha árvore. Não sei se alguma vez terá dado fruto, recebe do céu água e sol, tem acolhido pássaros e aves de criação, domésticas como as pessoas que entram e saem das casas, como os corpos a seu tempo acolhidos pela terra.
Fazem-me chegar a imagem da árvore com uma declaração de amor. Sempre que penso no amor, é curioso, surge-me de imediato no pensamento a imagem da morte. É assim porque julgo inseparáveis as duas forças, um tender para fora, um tender para dentro. Amorte será a palavra correcta, como música que embala a dança das feridas. Penso na morte embaraçado pelo medo da perda, penso na morte porque amar é querer o bem e querer o bem é desejar vida, até quando se pede morte. A carta escrita por Gorz é tão bonita. Mas não importa, nem eu nem a carta importamos.
Agora é tempo de árvores em flor, dos frutos colhidos, do sumo bebido dos frutos espremidos, é tempo de céus limpos. A visitação da brisa, como certa vez escrevi num poema que pretendia dizer: se algum dia morrermos, tenha quem nos ama a lembrança de deixar para sempre os restos debaixo de uma árvore. Nada de corpos, apenas cinza. 

Como uma brisa a visitar a terra.  

Detenho-me na árvore
pouso os olhos nos ramos,
os meus olhos são pássaros
que cantam cada uma daquelas folhas,
diria que as folhas são as notas musicais
deste canto que sai das retinas em flor,
não sei onde chegará a voz do pássaro,
não quero que chegue a lado nenhum,
queria apenas que pudesse ser
escutada debaixo da terra,

se o canto dos pássaros
pudesse ser escutado
debaixo da terra,

em nossos olhos a sombra
alumiaria as formas

e tudo surgiria nítido
como num dia limpo.

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