Ainda não fez um ano que enterrámos o corpo debaixo
daquela árvore, calcando bem a terra e sinalizando o lugar com um pedregulho.
Não consigo lembrar-me da árvore, apenas da sombra que fazia. Estava frio, eu
tinha frio. Continha o choro como sempre contenho o choro, uma dor a querer
saltar pela boca, uma dor presa à garganta, o peito a puxar a dor para baixo,
uma dor colada às paredes do peito.
Emociono-me com facilidade, houve um tempo
em que chorei muito. Quase tudo quanto em mim havia para chorar. Com o passar
dos anos, emociono-me mais facilmente. Perdi defesas onde ergui muros. É com
estranheza que constato o facto, parecendo-me até paradoxal que assim possa
ser. Mas não importo nada.
Agora é tempo das árvores em flor, o corpo morto como que
refloresceu na velha árvore. Não sei se alguma vez terá dado fruto, recebe do
céu água e sol, tem acolhido pássaros e aves de criação, domésticas como as
pessoas que entram e saem das casas, como os corpos a seu tempo acolhidos pela
terra.
Fazem-me chegar a imagem da árvore com uma declaração de
amor. Sempre que penso no amor, é curioso, surge-me de imediato no pensamento a
imagem da morte. É assim porque julgo inseparáveis as duas forças, um tender
para fora, um tender para dentro. Amorte será a palavra correcta, como música
que embala a dança das feridas. Penso na morte embaraçado pelo medo da perda,
penso na morte porque amar é querer o bem e querer o bem é desejar vida, até
quando se pede morte. A carta escrita por Gorz é tão bonita. Mas não importa,
nem eu nem a carta importamos.
Agora é tempo de árvores em flor, dos frutos colhidos, do
sumo bebido dos frutos espremidos, é tempo de céus limpos. A visitação da
brisa, como certa vez escrevi num poema que pretendia dizer: se algum dia
morrermos, tenha quem nos ama a lembrança de deixar para sempre os restos
debaixo de uma árvore. Nada de corpos, apenas cinza.
Como uma brisa a visitar
a terra.
Detenho-me na árvore
pouso os olhos nos ramos,
os meus olhos são pássaros
que cantam cada uma daquelas folhas,
diria que as folhas são as notas musicais
deste canto que sai das retinas em flor,
não sei onde chegará a voz do pássaro,
não quero que chegue a lado nenhum,
queria apenas que pudesse ser
escutada debaixo da terra,
se o canto dos pássaros
pudesse ser escutado
debaixo da terra,
em nossos olhos a sombra
alumiaria as formas
e tudo surgiria nítido
como num dia limpo.
2 comentários:
Lindo.
Sem fôlego...
Tão bonito, amor.
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