terça-feira, 12 de março de 2019

CLASSICO


Desde o livro de estreia, "Rua 31 de Janeiro (Algumas Vozes)" (&etc, Dezembro de 1998), que se coloca na poesia de José Ricardo Nunes (n. 1964) o problema da relação do sujeito com a realidade, aprofundado no livro intitulado “Apócrifo” (Deriva, Outubro de 2007) e extremado no volume “Compositores do Período Barroco” (Deriva, Junho de 2013). A este problema corresponde uma dúvida acerca das possibilidades da própria poesia enquanto gesto revelador. O poema é composto por palavras, estas são uma representação do real e, enquanto tal, oferecem-nos apenas simulacros da realidade. Esta noção é sobretudo relevante se tivermos em conta a hipótese da poesia enquanto busca da verdade, elemento esquivo, ainda que desafiante, nos poemas de José Ricardo Nunes. O livro “Andar a Par” (Tinta-da-China, Maio de 2015) tornou ainda mais complexa esta questão, na medida em que nesses poemas tudo parecia desenvolver-se a partir de um terreno confessional.
   Não por acaso, no poema 11. do mais recente “Classico” (Companhia das Ilhas, Janeiro de 2019) os versos iniciais jogam com a ideia de confissão desconstruindo-a: «Confesso: era eu / quem fugia e também eu / quem consumava a ligação directa / enquanto ela segurava o volante / em vez de ter eu, eu / ainda, o livro nas mãos» (p. 21). Na senda de Rimbaud o Eu destes versos é um Outro, ou como diria um dos nossos maiores modernistas «Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio».  Este “intermédio” resume a natureza do sujeito poético, mesmo quando o discurso parece adoptar um tom confessional. Recordemos, aliás, que um dos livros de José Ricardo Nunes se intitula precisamente “Confissões” (Companhia das Ilhas, Dezembro de 2013). A confissão é uma violência exercida sobre o sujeito, a qual no limite pode levar a processos de despersonalização. Disto resulta uma poesia em que o eu se manifesta sempre por interposta pessoa, tal como sucedia nas vozes de "Rua 31 de Janeiro" e se declara, mais uma vez, no poema 11. já aqui citado: «Tinha as suas vantagens, a vida / por interposta pessoa, não há / como negar, tinha, como gosto de afirmar, / as suas compensações» (p. 21).
   "Classico", assim mesmo, sem acento, reúne 24 poemas escritos entre 2015 e 2018. O autor faz questão de o sublinhar, levando-nos a crer numa preocupação com a organização que tende a associar o poema a um período existencial específico. Estes poemas, tal como os do livro anterior, surgem marcados pelo ferro do tempo vivido, são “consequência do lugar” e da experiência. Neles encontramos referências concretas a espaços físicos (Casa Antero, Hotel Classico, Igreja de Nossa Senhora do Pópulo… ) e a pessoas com nome próprio (Miguel, Jales, Manuel, Margarida, Henrique, Pedro…), como que oferecendo uma clareza de exposição na qual acabamos por subentender momentos de reflexão intimistas, obscuros, melancólicos. O dentro (interior, intimidade) é escuro, não se deixa revelar facilmente. A vida tende para um vazio, para o desperdício, e é sempre enigma irresolúvel.
   Percebemos que na divisão dos poemas em três conjuntos existem diferentes ordens temáticas, correspondendo o primeiro conjunto ao quotidiano, o segundo à memória, sobretudo às memórias da infância, com evocações de familiares, e o terceiro a um presente alumiado pela paixão e pelo amor enquanto esforços de superação da «rotina da vida». A epígrafe pedida de empréstimo a Pasolini clarifica a relevância nestes poemas do amor enquanto modo de conhecer. Classico, o Hotel de Bremen, surge como microcosmo pautado pela passagem e pela fugacidade. Tal como o Hotel, a vida é lugar de passagem. Um não-lugar, para usar a famosa expressão de Marc Augé. Mas o Classico confunde-se no poema com o Eu, o próprio Eu surge como lugar de passagem onde as pessoas vão entrando, pernoitando, saindo, o Eu é essa entidade fenomenológica aberta ao mundo através da qual o Outro nos ocupa: «Imagina que não és tu, / que em vez de seres tu / o hóspede é o quarto do hotel / que te ocupa» (p. 9). Desta relação que impele o ser para o vazio (entre o início e o termo do primeiro poema do livro podemos ler qualquer coisa como “Imagina (…) o vazio”) concluímos o amor como espécie de solução, como única forma de superação. 
   No poema 4, que pode ser lido sob a forma de arte poética, os versos parecem querer sublinhar precisamente as coordenadas a partir das quais o poema se desenvolve: «Nada acerca da poesia, tudo / sobre o maldito emprego, / (…) tudo sobre a loucura e a ausência / e a ausência de saudades, / tudo sobre o amor, / a vida, o desgarrado mundo, / a vida perdida, a vida ainda» (p. 12). É à vida que os poemas de José Ricardo Nunes se vêm agarrando desde “Andar a Par”, não perdendo de vista a problematização do ser, mas pretendendo alargar o campo de representação ontológico às forças concretas da experiência, aos lugares, às pessoas, ao que surde da relação entre as pessoas no contexto de certos lugares, não apenas à linguagem, não apenas a uma ideia de linguagem: «Tivesse outra idade, fosse / a tempo de escolher outra profissão / e seria arrombador, / armaria bombas em caixas-fortes, // amaria muito mais» (pp. 40-41).

2 comentários:

manuel a. domingos disse...

Ando a ler.
Já levei dois murros no estômago.

hmbf disse...

Bem feita. :-)