Desde o livro de estreia, "Rua 31 de Janeiro
(Algumas Vozes)" (&etc, Dezembro de 1998), que se coloca na poesia de José
Ricardo Nunes (n. 1964) o problema da relação do sujeito com a realidade,
aprofundado no livro intitulado “Apócrifo” (Deriva, Outubro de 2007) e
extremado no volume “Compositores do Período Barroco” (Deriva, Junho de 2013). A
este problema corresponde uma dúvida acerca das possibilidades da própria
poesia enquanto gesto revelador. O poema é composto por palavras, estas são uma
representação do real e, enquanto tal, oferecem-nos apenas simulacros da
realidade. Esta noção é sobretudo relevante se tivermos em conta a hipótese da
poesia enquanto busca da verdade, elemento esquivo, ainda que desafiante, nos
poemas de José Ricardo Nunes. O livro “Andar a Par” (Tinta-da-China, Maio de
2015) tornou ainda mais complexa esta questão, na medida em que nesses poemas
tudo parecia desenvolver-se a partir de um terreno confessional.
Não por acaso, no poema 11. do mais recente “Classico”
(Companhia das Ilhas, Janeiro de 2019) os versos iniciais jogam com a ideia de
confissão desconstruindo-a: «Confesso: era eu / quem fugia e também eu / quem
consumava a ligação directa / enquanto ela segurava o volante / em vez de ter
eu, eu / ainda, o livro nas mãos» (p. 21). Na senda de Rimbaud o Eu destes
versos é um Outro, ou como diria um dos nossos maiores modernistas «Eu não sou
eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio». Este “intermédio” resume a natureza do sujeito
poético, mesmo quando o discurso parece adoptar um tom confessional.
Recordemos, aliás, que um dos livros de José Ricardo Nunes se intitula
precisamente “Confissões” (Companhia das Ilhas, Dezembro de 2013). A confissão
é uma violência exercida sobre o sujeito, a qual no limite pode levar a processos de despersonalização. Disto resulta uma poesia em que o eu se
manifesta sempre por interposta pessoa, tal como sucedia nas vozes de "Rua 31 de
Janeiro" e se declara, mais uma vez, no poema 11. já aqui citado: «Tinha as suas
vantagens, a vida / por interposta pessoa, não há / como negar, tinha, como
gosto de afirmar, / as suas compensações» (p. 21).
"Classico", assim mesmo, sem acento, reúne 24 poemas
escritos entre 2015 e 2018. O autor faz questão de o sublinhar, levando-nos a
crer numa preocupação com a organização que tende a associar o poema a um
período existencial específico. Estes poemas, tal como os do livro anterior,
surgem marcados pelo ferro do tempo vivido, são “consequência do lugar” e da
experiência. Neles encontramos referências concretas a espaços físicos (Casa
Antero, Hotel Classico, Igreja de Nossa Senhora do Pópulo… ) e a pessoas com
nome próprio (Miguel, Jales, Manuel, Margarida, Henrique, Pedro…), como que
oferecendo uma clareza de exposição na qual acabamos por subentender
momentos de reflexão intimistas, obscuros, melancólicos. O dentro (interior, intimidade)
é escuro, não se deixa revelar facilmente. A vida tende para um vazio, para o
desperdício, e é sempre enigma irresolúvel.
Percebemos que na divisão dos poemas em três conjuntos
existem diferentes ordens temáticas, correspondendo o primeiro conjunto ao
quotidiano, o segundo à memória, sobretudo às memórias da infância, com
evocações de familiares, e o terceiro a um presente alumiado pela paixão e pelo
amor enquanto esforços de superação da «rotina da vida». A epígrafe pedida de empréstimo
a Pasolini clarifica a relevância nestes poemas do amor enquanto modo de
conhecer. Classico, o Hotel de Bremen, surge como microcosmo
pautado pela passagem e pela fugacidade. Tal como o Hotel, a vida é lugar de
passagem. Um não-lugar, para usar a famosa expressão de Marc Augé. Mas o Classico
confunde-se no poema com o Eu, o próprio Eu surge como lugar de passagem onde
as pessoas vão entrando, pernoitando, saindo, o Eu é essa entidade
fenomenológica aberta ao mundo através da qual o Outro nos ocupa: «Imagina que
não és tu, / que em vez de seres tu / o hóspede é o quarto do hotel / que te
ocupa» (p. 9). Desta relação que impele o ser para o vazio (entre o início e o
termo do primeiro poema do livro podemos ler qualquer coisa como “Imagina (…) o
vazio”) concluímos o amor como espécie de solução, como única forma de
superação.
No poema 4, que pode ser lido sob a forma de arte poética, os versos
parecem querer sublinhar precisamente as coordenadas a partir das quais o poema se desenvolve: «Nada acerca da poesia, tudo / sobre o
maldito emprego, / (…) tudo sobre a loucura e a ausência / e a ausência de
saudades, / tudo sobre o amor, / a vida, o desgarrado mundo, / a vida perdida,
a vida ainda» (p. 12). É à vida que os poemas de José Ricardo
Nunes se vêm agarrando desde “Andar a Par”, não perdendo de vista
a problematização do ser, mas pretendendo alargar o campo de representação ontológico
às forças concretas da experiência, aos lugares, às pessoas, ao que surde da
relação entre as pessoas no contexto de certos lugares, não apenas à linguagem,
não apenas a uma ideia de linguagem: «Tivesse outra idade, fosse / a
tempo de escolher outra profissão / e seria arrombador, / armaria bombas em
caixas-fortes, // amaria muito mais» (pp. 40-41).
2 comentários:
Ando a ler.
Já levei dois murros no estômago.
Bem feita. :-)
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