Se é importante saber de onde vimos, não menos será que
fiquemos atentos ao modo como os outros nos vêem. Certo que jamais teremos
acesso ao que pensam sobre nós, mal seria se tivéssemos. Imaginai o inferno se outros
acedessem ao que acerca deles pensamos. É saudável e até agradável esta
distância que nos separa do outro, este exílio que obriga à reflexão e à
desconfiança. Mas não menos agradável é assistir a quem fale de nós abertamente, desbravando
terreno à imaginação como ao espelho se abre um rosto. Quando digo nós, minhas
filhas, não me refiro ao indivíduo, que esse será sempre mistério inconfessável
para si mesmo, mas antes ao que no individuo há de influência exercida pelo
colectivo. Refiro-me à cultura, à sociedade, ao ambiente social que nos deforma
e conforma ou que simplesmente nos informa, permitindo-nos que cresçamos em
reacção e conflito ou em acomodação e renúncia.
Miguel de Unamuno (1864-1936) foi um ilustre espanhol que
ousou pensar-nos em voz alta, dedicando-nos o opúsculo com o título Os
Portugueses, Um Povo Suicida. Originalmente escrito em 1908, podeis conhecê-lo
na edição da Ática datada de Abril de 2011. Não é difícil encontrar sensatez no
diagnóstico: «Portugal é um povo triste — e é-o mesmo quando sorri» (p.
7). Classificar-nos de povo suicida não nos socorre na manifesta propensão genética
que temos para a desgraça, mas livra-nos do fardo que leva a concluir a
inutilidade da vida. Com tão cruel evidência não se conformam os fadistas,
encalhados entre o oceano e sucessivas invasões. A solução para os portugueses está
em fugirem de si próprios como o diabo da cruz. Daí que se detestem, daí que se
ocupem tanto zurzindo contra si mesmos, daí que se mostrem tão afáveis e
complacentes para com aquilo que vem de fora e implacáveis para com aquilo
gerado dentro.
Li algures, minhas filhas, um retrato cómico da sociedade
portuguesa: espécie de bolha onde todos dizem mal uns dos outros sem
terem a noção de que os outros são essa massa indefinível entre os quais também
nós nos encontramos. Sendo que cada um de nós é sempre um outro, não resta nada
de bom entre os portugueses. No entanto, a desgraça tem sido nossa força.
Sabemos rir da aspereza com que nos crucificamos. Talvez aí germine o gene desta
lúgubre inclinação para o suicídio, não necessariamente físico, mas também
moral, espécie de “genocídio” focalizado no ânimo com que poderíamos encarar a
inutilidade das nossas existências. A aceitação desta inutilidade afigura-se elementar,
na medida em que se impõe como a única atitude verdadeiramente útil à fatal
condição elegíaca.
Há neste povo «mais apaixonado do que sentimental» de que
falava Unamuno uma matemática inquestionável: «os sonetos são um grande
purgante das paixões excessivas, pois sabe-se de sonetistas que morreram de fome
mas de nenhum que tenha morrido de amor» (pp. 8-9). Podeis imaginar quanto
disto vale num país que se diz de poetas! O resto é História e alternância
democrática, aquele masoquismo de passarmos o tempo a vituperar quem elegemos reiteradamente,
a indolência com que tratamos tudo quanto nos indigna, um deixar andar na
esperança de melhores dias que virão, porventura, como virá o tal que se perdeu
nas áfricas, embrulhado em bruma invisível. Sabemos rir, excepto de nós
próprios. Por isso nos suicidamos.
Como pode não ser suicida um povo assim? Os suicídios de
Antero, Soares dos Reis, Camilo, Mouzinho de Albuquerque, Trindade Coelho,
enumerados por Unamuno, são resíduos numa sociedade toda ela suicidária, mero
exemplo lacónico, previsível, sucinto. A orgânica não poderá ser outra enquanto
persistirmos na saudade, no lamento, nesse pó cavernoso que a todos inspira
versos tristonhos e esmorecidas elegias. Sobre toda essa tralha, um lençol de
gargalhadas estridentes e a consciência interna da maior das forças vitais:
nada há de mais útil nesta vida efémera que a inutilidade decretada às coisas
que dão prazer e fazem rir. O resto subentende-se no opúsculo: «Não falta mesmo por aí
quem diga que isto não é já um povo, mas sim — o cadáver dum povo» (p. 13).
Portanto, ride, ride de vós próprias e do espanhol que nos define, ride do
mundo e da vida, ride com alegria e paixão, pois só rindo de tudo e com todos
os dentes à mostra podeis um dia dizer ter estado próximas da felicidade. Isto é, da alegria de viver.
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