Eurico, o Presbítero teria tudo para ser um enorme êxito
hollywoodesco, não fora ter sido escrito por um português no século XIX. Datado
de 1844, o romance surge normalmente englobado no conjunto de obras que conferem
ao autor o estatuto de primeiro grande cultor do romance histórico entre nós. O
próprio Herculano denota escrúpulos na classificação do livro, referindo-se-lhe
como «crónica-poema, lenda ou o que quer que seja». A acção decorre no fim do
século VII, aquando da chegada dos árabes ao Reino Visigótico. O comandante Ṭāriq
ibn Ziyād é uma das personagens históricas evocadas. Do lado cristão, evoca-se
a figura do suevo Teodomiro e coloca-se em acção Pelágio das Astúrias. Mas a
personagem central, um godo de nome Eurico, é pura ficção, apesar de no séc. V
ter existido um Eurico rei dos visigodos.
Duas existências pelejam no interior de Eurico, uma antes
de ter experimentado o amor por uma mulher, outra depois de esse amor se ter
revelado impossível. Hermengarda é o nome da amada, recusada a Eurico devido à
posição humilde por este ocupada. Convertido à religião e à poesia, Eurico, o
presbítero, recolhe-se na pobre paróquia de Carteia durante dez anos de vida,
até que a vista dos árabes a invadirem terras espanholas, e a tomada de
conhecimento de traições em curso no reino visigótico, o levam a vestir novamente
a farda de cavaleiro negro. Presbítero pela mulher amada, Cavaleiro Negro pela
pátria, Eurico transporta a característica essencial a todos os grandes heróis
de ficção: a ambivalência. Metade humano, metade animal, como as lendárias
figuras mitológicas, cavaleiro solitário com o coração dividido entre a melancolia
e a ferocidade.
«Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou
ridículo?», pergunta-se a determinada altura como quem encontra subtítulo para
a história de uma vida. Dito isto, os condimentos estão lançados. Temos intriga
política, brutais cenários de guerra, desconfianças e traições, temos
sequências violentas como a de um suicídio em massa de freiras que recusam
terminar como prostitutas nas mãos dos árabes, temos resgates improváveis, perseguições,
temos batalhas sangrentas, temos muito sangue, muita porrada, donzelas
lindíssimas e frágeis, gente que enlouquece por amor, temos desespero e
esperança, guerreiros resistentes como aço, gritos, maldições, martírios. E temos
um amor impossível em cenário de fundo, do qual retiraremos um sacrifício final
em nome da vingança. Pela pátria? Pelo amor impossível? Pela busca da paz
eterna?
A gente lê e é como se estivesse a ver um Braveheart à
portuguesa. Houvesse por cá máquina de cinema, seria isto um sucesso dos
diabos. Ainda mais agora, neste tempo de discussão civilizacional, com o
fantasma do califado a açoitar o Ocidente através de um terrorismo atroz.
Talvez o politicamente correcto trave o ímpeto comercial da coisa, pelo que
cabe perguntar: «Porque a abelha zumbiu aos ouvidos do caçador faminto,
arrojará ele para longe o mel do seu favo e esmagará o insecto?» Lido o livro,
fica-se com a nítida sensação de que daria um belíssimo filme de acção.
Cenários não faltam onde pudéssemos reproduzir as cordilheiras cortadas, os
algares profundos, as gargantas selvosas, os picos agudos por onde os godos
fugiram dos árabes, por onde os árabes assaltaram os godos. Herculano propôs-se
pintar o último semideus a combater na Terra. O último não terá sido, mas não
restem dúvidas de quão bem pintado foi.
5 comentários:
Durante largos anos às voltas com a literatura, esta obra do Romantismo foi uma das que mais me apaixonaram.
Concordo completamente consigo quando diz que Eurico, o Presbítero tem todos os ingredientes que dariam um filme fantástico. Tem lá tudo. Até a mensagem subliminar sobre o amor incompleto, o amor espiritual que o homem procurou no refúgio da religião, mas que não o realizou. Na impossibilidade de viver a castracão imposta pela igreja e na impossibilidade da concretização física do amor, opta por se atirar para o meio da refrega. O misterioso cavaleiro negro que se sacrifica pelo amor e pela religião, a mesma que lhe exige que seja meio-homem. Ainda hoje.
Marcante o momento em que o misterioso cavaleiro atravessa o abismo com a Hermengarda desmaiada nos braços.
Lindo!
Bom fim de semana.
Nunca tinha lido, finalmente aconteceu. Fiquei surpreendido, estava à espera de outra coisa. Mas é um livro cheio de aventura, altamente cinematográfico. Bom fim-de-semana. E saúde,
Um dos livros da minha vida.
https://meianoitetododia.blogspot.com/2013/07/50-livros-que-os-meus-amigos-devem-ler_15.html
olha que fixe, não me lembrava desse post :-)
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