sexta-feira, 22 de março de 2019

EURICO, O CAVALEIRO NEGRO


Eurico, o Presbítero teria tudo para ser um enorme êxito hollywoodesco, não fora ter sido escrito por um português no século XIX. Datado de 1844, o romance surge normalmente englobado no conjunto de obras que conferem ao autor o estatuto de primeiro grande cultor do romance histórico entre nós. O próprio Herculano denota escrúpulos na classificação do livro, referindo-se-lhe como «crónica-poema, lenda ou o que quer que seja». A acção decorre no fim do século VII, aquando da chegada dos árabes ao Reino Visigótico. O comandante Ṭāriq ibn Ziyād é uma das personagens históricas evocadas. Do lado cristão, evoca-se a figura do suevo Teodomiro e coloca-se em acção Pelágio das Astúrias. Mas a personagem central, um godo de nome Eurico, é pura ficção, apesar de no séc. V ter existido um Eurico rei dos visigodos.
   Duas existências pelejam no interior de Eurico, uma antes de ter experimentado o amor por uma mulher, outra depois de esse amor se ter revelado impossível. Hermengarda é o nome da amada, recusada a Eurico devido à posição humilde por este ocupada. Convertido à religião e à poesia, Eurico, o presbítero, recolhe-se na pobre paróquia de Carteia durante dez anos de vida, até que a vista dos árabes a invadirem terras espanholas, e a tomada de conhecimento de traições em curso no reino visigótico, o levam a vestir novamente a farda de cavaleiro negro. Presbítero pela mulher amada, Cavaleiro Negro pela pátria, Eurico transporta a característica essencial a todos os grandes heróis de ficção: a ambivalência. Metade humano, metade animal, como as lendárias figuras mitológicas, cavaleiro solitário com o coração dividido entre a melancolia e a ferocidade.
   «Orgulho humano, qual és tu mais feroz, estúpido ou ridículo?», pergunta-se a determinada altura como quem encontra subtítulo para a história de uma vida. Dito isto, os condimentos estão lançados. Temos intriga política, brutais cenários de guerra, desconfianças e traições, temos sequências violentas como a de um suicídio em massa de freiras que recusam terminar como prostitutas nas mãos dos árabes, temos resgates improváveis, perseguições, temos batalhas sangrentas, temos muito sangue, muita porrada, donzelas lindíssimas e frágeis, gente que enlouquece por amor, temos desespero e esperança, guerreiros resistentes como aço, gritos, maldições, martírios. E temos um amor impossível em cenário de fundo, do qual retiraremos um sacrifício final em nome da vingança. Pela pátria? Pelo amor impossível? Pela busca da paz eterna?
   A gente lê e é como se estivesse a ver um Braveheart à portuguesa. Houvesse por cá máquina de cinema, seria isto um sucesso dos diabos. Ainda mais agora, neste tempo de discussão civilizacional, com o fantasma do califado a açoitar o Ocidente através de um terrorismo atroz. Talvez o politicamente correcto trave o ímpeto comercial da coisa, pelo que cabe perguntar: «Porque a abelha zumbiu aos ouvidos do caçador faminto, arrojará ele para longe o mel do seu favo e esmagará o insecto?» Lido o livro, fica-se com a nítida sensação de que daria um belíssimo filme de acção. Cenários não faltam onde pudéssemos reproduzir as cordilheiras cortadas, os algares profundos, as gargantas selvosas, os picos agudos por onde os godos fugiram dos árabes, por onde os árabes assaltaram os godos. Herculano propôs-se pintar o último semideus a combater na Terra. O último não terá sido, mas não restem dúvidas de quão bem pintado foi.

5 comentários:

Célia disse...

Durante largos anos às voltas com a literatura, esta obra do Romantismo foi uma das que mais me apaixonaram.
Concordo completamente consigo quando diz que Eurico, o Presbítero tem todos os ingredientes que dariam um filme fantástico. Tem lá tudo. Até a mensagem subliminar sobre o amor incompleto, o amor espiritual que o homem procurou no refúgio da religião, mas que não o realizou. Na impossibilidade de viver a castracão imposta pela igreja e na impossibilidade da concretização física do amor, opta por se atirar para o meio da refrega. O misterioso cavaleiro negro que se sacrifica pelo amor e pela religião, a mesma que lhe exige que seja meio-homem. Ainda hoje.
Marcante o momento em que o misterioso cavaleiro atravessa o abismo com a Hermengarda desmaiada nos braços.
Lindo!
Bom fim de semana.

hmbf disse...

Nunca tinha lido, finalmente aconteceu. Fiquei surpreendido, estava à espera de outra coisa. Mas é um livro cheio de aventura, altamente cinematográfico. Bom fim-de-semana. E saúde,

manuel a. domingos disse...

Um dos livros da minha vida.

manuel a. domingos disse...

https://meianoitetododia.blogspot.com/2013/07/50-livros-que-os-meus-amigos-devem-ler_15.html

hmbf disse...

olha que fixe, não me lembrava desse post :-)