Imaginemos um mundo em que tudo fosse mensurável, em que
cada gesto tivesse a sua ordem de medida determinada por um objectivo
estipulado, em que a própria respiração fosse avaliada de acordo com taxas de
concretização, em que os recursos valessem segundo metas de sucesso
burocratizadas nos ficheiros informáticos de gestores obcecados com lucros dos
quais eles próprios não retirassem proveito, pois nesse mundo tudo seria de tal
modo hierarquizado que nem certos cargos de chefia valeriam mais do que
o reconhecimento vazio de mãos invisíveis, financeiras, movidas por uma desumanizada
ganância. Num mundo assim, que não será difícil de imaginar, teríamos camadas
sobre camadas de cargos intermédios governados por gente subordinada, servente
e servil, gente burrocratizada, como diria
o poeta, carregando aos ombros o peso da frustração e no estômago a azia da
mediocridade, um mundo de humilhados e ofendidos, como denunciou Dostoiévski,
mas agora eles próprios humilhadores e ofensivos, infligindo em quem está por
baixo o que lhes seria infligido por quem está por cima. Paremos de imaginar,
um mundo assim não é muito diferente do mundo em que vivemos. Nada há nesse
mundo que possa ser produto de uma imaginação fértil, nele tudo resulta de uma
observação arguta e crítica do mundo em que vivemos, isto é, sobrevivemos. Esse
mundo surge nitidamente retratado nos contos do norte-americano George Saunders
(n. 1958), reunidos na obra de estreia recentemente vinda a lume em Portugal
com o título GuerraCiviLândia Em Mau Declínio (Antígona, Janeiro de 2019). São
seis contos e uma novela marcados pelas consequências do capitalismo (selvagem) numa mente
com necessidade de se vingar, fazendo-o a partir de uma abordagem dos states
que pondera uma sociedade dividida entre Normais e Defeituosos, isto é, gente
produtiva e consumista e gente fracassada segundo os parâmetros impostos pelas
sociedades consumistas. A ideia de "parque temático" que surge amiúde enquanto
cenário de divisões e conflitos mais ou menos hostis dá conta, com impecável
sentido de humor, do modo como as relações laborais e o mercado de trabalho
neste mundo surgem delimitados por forças desproporcionais que não só potenciam
a servidão e a exploração como a promovem. Saunders é exímio na criação de
situações alegóricas, embora por vezes aparentemente caricatas, sobre o
declínio e o fracasso num universo regido por ideais tontos de sucesso. O
conto intitulado O Director Executivo de Cento e Oitenta Quilos é das melhores
peças que li nos últimos tempos sobre a legitimação da ofensa e daquilo a que
hoje se chama bullying ou assédio moral, práticas tão correntes que chegam a
passar despercebidas enquanto máquinas de castração activadoras do conformismo
e do abismo existencial: «Eu não sou má pessoa. Se ao menos conseguisse deixar
de ter esperanças. Se ao menos conseguisse dizer ao meu coração: Desiste» (p.
59). Numa nota final o autor refere-se aos seus contos como sendo «maldosos, a
espaços», cruéis, «ocasionalmente desagradáveis», e talvez tudo isso seja
verdade, não pelos contos em si, que vêm sempre acompanhados de um sarcasmo visceroso
e de um sentido de humor cativante, mas pelo realismo que denotam em situações
aparentemente nonsense e surreais: «Depois avistas uma luz através das árvores.
Numa colina vês um sinal de néon e um castelo iluminado. / TERRA DA ABUNDÂNCIA,
diz o sinal, ONDE O MÉRITO É REI — TAL COMO VOCÊ!» (p. 147) Esta luz
existe, estas árvores são de um naturalismo inquestionável, este sinal é
vulgar, tudo nesta descrição é de uma plausibilidade atroz quando nos
confrontamos com um mérito que se avalia em função da capacidade que cada um
adquire para ser indiferente ao outro, para lhe foder a vida de modo a ficar
por cima. E a abundância traduz-se numa avidez insaciável, numa histeria
materialista, consumista, geradora de cidadãos transformados em meras máquinas
de consumo, gente que não diz o que pensa nem o que sente, talvez até porque
desaprenda de pensar e de sentir, mas simplesmente o que convém. É nesta Terra que
o gesto supostamente mais humano se converte num desastroso e inconveniente
equívoco, como no final do magnífico A Fracassada Campanha Terrorista de Mary,
A Oprimida. Atribuísse estrelinhas este que vos escreve, seriam cinco garantidas.
Incluindo a tradução de Rogério Casanova.
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