sexta-feira, 8 de março de 2019

GUERRACIVILÂNDIA EM MAU DECLÍNIO


Imaginemos um mundo em que tudo fosse mensurável, em que cada gesto tivesse a sua ordem de medida determinada por um objectivo estipulado, em que a própria respiração fosse avaliada de acordo com taxas de concretização, em que os recursos valessem segundo metas de sucesso burocratizadas nos ficheiros informáticos de gestores obcecados com lucros dos quais eles próprios não retirassem proveito, pois nesse mundo tudo seria de tal modo hierarquizado que nem certos cargos de chefia valeriam mais do que o reconhecimento vazio de mãos invisíveis, financeiras, movidas por uma desumanizada ganância. Num mundo assim, que não será difícil de imaginar, teríamos camadas sobre camadas de cargos intermédios governados por gente subordinada, servente e servil, gente burrocratizada, como  diria o poeta, carregando aos ombros o peso da frustração e no estômago a azia da mediocridade, um mundo de humilhados e ofendidos, como denunciou Dostoiévski, mas agora eles próprios humilhadores e ofensivos, infligindo em quem está por baixo o que lhes seria infligido por quem está por cima. Paremos de imaginar, um mundo assim não é muito diferente do mundo em que vivemos. Nada há nesse mundo que possa ser produto de uma imaginação fértil, nele tudo resulta de uma observação arguta e crítica do mundo em que vivemos, isto é, sobrevivemos. Esse mundo surge nitidamente retratado nos contos do norte-americano George Saunders (n. 1958), reunidos na obra de estreia recentemente vinda a lume em Portugal com o título GuerraCiviLândia Em Mau Declínio (Antígona, Janeiro de 2019). São seis contos e uma novela marcados pelas consequências do capitalismo (selvagem) numa mente com necessidade de se vingar, fazendo-o a partir de uma abordagem dos states que pondera uma sociedade dividida entre Normais e Defeituosos, isto é, gente produtiva e consumista e gente fracassada segundo os parâmetros impostos pelas sociedades consumistas. A ideia de "parque temático" que surge amiúde enquanto cenário de divisões e conflitos mais ou menos hostis dá conta, com impecável sentido de humor, do modo como as relações laborais e o mercado de trabalho neste mundo surgem delimitados por forças desproporcionais que não só potenciam a servidão e a exploração como a promovem. Saunders é exímio na criação de situações alegóricas, embora por vezes aparentemente caricatas, sobre o declínio e o fracasso num universo regido por ideais tontos de sucesso. O conto intitulado O Director Executivo de Cento e Oitenta Quilos é das melhores peças que li nos últimos tempos sobre a legitimação da ofensa e daquilo a que hoje se chama bullying ou assédio moral, práticas tão correntes que chegam a passar despercebidas enquanto máquinas de castração activadoras do conformismo e do abismo existencial: «Eu não sou má pessoa. Se ao menos conseguisse deixar de ter esperanças. Se ao menos conseguisse dizer ao meu coração: Desiste» (p. 59). Numa nota final o autor refere-se aos seus contos como sendo «maldosos, a espaços», cruéis, «ocasionalmente desagradáveis», e talvez tudo isso seja verdade, não pelos contos em si, que vêm sempre acompanhados de um sarcasmo visceroso e de um sentido de humor cativante, mas pelo realismo que denotam em situações aparentemente nonsense e surreais: «Depois avistas uma luz através das árvores. Numa colina vês um sinal de néon e um castelo iluminado. / TERRA DA ABUNDÂNCIA, diz o sinal, ONDE O MÉRITO É REI TAL COMO VOCÊ!» (p. 147) Esta luz existe, estas árvores são de um naturalismo inquestionável, este sinal é vulgar, tudo nesta descrição é de uma plausibilidade atroz quando nos confrontamos com um mérito que se avalia em função da capacidade que cada um adquire para ser indiferente ao outro, para lhe foder a vida de modo a ficar por cima. E a abundância traduz-se numa avidez insaciável, numa histeria materialista, consumista, geradora de cidadãos transformados em meras máquinas de consumo, gente que não diz o que pensa nem o que sente, talvez até porque desaprenda de pensar e de sentir, mas simplesmente o que convém. É nesta Terra que o gesto supostamente mais humano se converte num desastroso e inconveniente equívoco, como no final do magnífico A Fracassada Campanha Terrorista de Mary, A Oprimida. Atribuísse estrelinhas este que vos escreve, seriam cinco garantidas. Incluindo a tradução de Rogério Casanova.

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