Foi descoberta uma nova espécie, a rã transparente
— nela observamo-nos tal como somos —
um sistema de órgãos funcionais,
tubagens e ligamentos
se a perfurarmos veremos nitidamente
como sofre cada pedaço do corpo,
o que nos faz retroceder
e desejar deixá-lo intacto,
museu escancarado de frangibilidades orgânicas
de onde ao mesmo tempo a ideia de corpo está excluída,
remetida às representações humanas
em que a dor se revolteia sob capas e peles,
e o sangue fulge só entre brechas
perfurar este batráquio revelaria uma simples destruição,
a quebra das acoplagens,
o fim da palpitação cronometrada
ainda que a transparência,
ao ser rasgada,
nos arrojasse de frente o halo da vida desprotegida
Catarina Costa (n. 1985), in Essas Alegrias Violentas
(Companhia das Ilhas, Março de 2019). Desde Marcas de Urze (Cosmorama, 2008)
que vem publicando com regularidade em editoras de distribuição restrita, o que
explicaria alguma desatenção da crítica especializada não obedecesse esta a uma
selectividade que pouco ou nada tem que ver com o âmbito de distribuição das
editoras em causa. Na sua poesia vislumbramos jogos de contrastes entre luz e
sombra, entre tempos e espaços diversos, ora oníricos, ora materiais, entre os
domínios da loucura e da normalidade, da saúde e da doença. Destes contrastes retiramos
a ideia de uma inclinação para o anómalo, por vezes detectado na alusão a
disformidades corpóreas, na sugestão de um pathos determinado por imagens
violentas, desfocadas e desfiguradas como sejam as que dão corpo à memória. O
poema é ponto de encontro entre uma primeira e uma segunda pessoas, por vezes
desdobradas numa terceira que abre os campos da intimidade e da
confidencialidade, ainda que nunca de um modo absolutamente claro ou óbvio:
«violo o laço da ínfima voz entre nós / perante um terceiro / na tentativa de
obter uma resposta externa / aos fragmentos de adivinhas que me deste e não
resolvi» (E. A. V., p. 34). Não violentando a leitura com exasperações e fúrias,
Catarina Costa deixa subentendida nos seus versos uma violência à qual
corresponde um processo de atrofia do ser. A solidão, o isolamento, o exílio, o
afastamento, o desamparo, surdem de uma ideia de desejo não consumado, latente,
que é o que realmente violenta o sujeito na sua intimidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário