As mulheres que amam envelhecer são mais numerosas do que se pode julgar. As que vão deixando de lado os sapatos desconfortáveis e os métodos depilatórios; as que, pouco a pouco, se transformam, como árvores desgrenhadas, com pólipos e rugosidades, musgos e crostas, com sinas cemiteriais nas mãos, com unhas duras como cascos e cheias de veias salientes; as que prescindem das faixas, cintas, bandas e alças; as que se tornam vitoriosas por efeito dum gáudio que emascula os homens; as que acabam com a contracepção e suas infames ciladas e se emancipam deveras do espermatozóide, do ventre, do percalço do amor e do sexo; as que, enfim, concebem num canto da memória essa falta menstrual que foi a vida inteira, a falha da paixão dinâmica e gloriosa que não aconteceu nem acontecerá nunca. A velhice é para elas o prazer que encobre a morte, sem pecado, risco e culpa formada.
Agustina Bessa-Luís, in O Mosteiro, Lisboa, Guimarães Editores, 1980, p. 68, citada por Isabel Rio Novo, in O Poço e a Estrada - biografia de Agustina Bessa-Luís, Contraponto, Fevereiro de 2019, p. 457.
7 comentários:
fogo! :)
Foi exactamente isso que pensei. :-)
Não li o livro de Isabel Rio Novo, não sei o que por lá é dito relativamente a «O Mosteiro», mas sei que dos que conheço de Agustina, e são alguns, não há obra dela em que as frases, que para ela são núcleos narrativos autónomos, surjam tão perfeitamente buriladas, tão provocadoras na construção, tão perfeitamente equilibradas na exposição das ideias que brotam em torrente. Um livro de uma escritora no pico da sua arte, que nunca mais escreveu exactamente como ali, apesar dos muitos que ainda publicou nos vinte e cinco anos seguintes.
Xilre, a biografia está a ser uma decepção. Não diz grande coisa sobre "O Mosteiro". Vale pela citações, 80 páginas de notas de rodapé. Mas lá irei, a seu tempo.
Cuidado. Não nos deixemos ofuscar pelo fetichismo da técnica literária. “A falha da paixão” deste excerto, pode também ser interpretada como a crença redutora de que as mulheres são mais pragmáticas, realistas e calculistas do que os homens e como tal incapazes de se deixarem levar por um acto de insensatez sonhadora. No caso, mulheres de meia idade que abandonam vidas de servitude e miudezas de sobrevivência e se dispõem a pagar o preço por um acto de paixão assolapada. Doris Lessing escreveu aos setenta e tais anos Adore, um romance sobre duas MILFS que colocaram a amizade em causa por cada qual se ter apaixonado pelo filho adolescente da respectiva amiga. Estas paixões não procuraram o domínio absoluto, ao contrário por exemplo da personagem na Sibila, que tem uma relação amorosa com um rapazinho mentalmente retardado, de estatuto social bem inferior ao seu.
Hum. Não me expliquei bem. O que queria dizer era mais simplesmente que não acho que haja assim grande emancipação só pelas velhas se libertarem dos desconfortos inerentes à beleza e à contracepção que constrangem as novas.
Ainda assim é um belo naco de prosa.
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