sábado, 6 de abril de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #14


Chegados aos 40, é inevitável que se instaure em nós o desespero da rotina. Pensamos naqueles cujas existências foram curtas, mas aparentemente intensas e repletas das peripécias que julgamos serem o suco da vida: viagens, paixões, aventura, risco, limite. A solidão que cresce dentro de um corpo arreado pela consciência do dever, a insatisfação daí advinda, a ideia de que tudo poderia haver sido diferente mediante opções menos conformadas, frustrantes, logra em pequenos instantes de surpresa o consolo que garante valer a pena o esforço. Um amigo que nos chega com aquele filme que toda a vida procurámos e não encontrámos, uma paixão inesperada que nos assoma pela janela, um dia levado de jorro com fúrias e rompantes, aquela precipitação para o abismo que os prazeres do corpo oferecem à mente, sol onde se aguardava negrume, chuva onde se esperava sol, são lâminas que rompem o hábito confortando-nos no confronto com o desespero.
   A caminho dos 45, confesso-vos, já pouco me surpreende. Dormi na rua e em hotéis de cinco estrelas, concluindo que independentemente do lugar nada tem mais valor do que o sono pesado que nem miséria nem luxo garantem. O sono pesado vem de andarmos bem connosco e com o mundo, parecendo-me hoje que o desequilíbrio entre ambos seja a razão última das insónias. Em não podendo estar de bem com o mundo, com as injustiças, iniquidades e desigualdades universais, como poderá um homem andar de bem consigo mesmo? Só em lhe faltando a tal consciência do dever, falta que tanto pode redundar numa libertinagem eternamente insatisfeita como numa indolência impossível de suportar. Mas as surpresas acontecem, e por vezes pouco mais basta do que um livro que nos chegue inesperadamente às mãos.
   Mulheres nascidas de um nome (LX Vinte Oito, Fevereiro de 2019) interrompe a rotina, abre a porta a um universo de personagens onde se manifestam todas as contradições possíveis de imaginar dentro de um ser humano. A ilustradora Beatriz Bagulho (n. 1997) já nos é conhecida de outras andanças. Deveis lembrar-vos dos seus desenhos para esse Simão sem medo Os Jardins das Cerejeiras (Douda Correria, Outubro de 2018) com que há coisa de meses presenteei a Beatriz. O talento é o mesmo, ainda que os motivos surjam diversos:



   Quanto a Claudio Hochman (n. 1958), argentino de Buenos Aires, chega-nos originalmente pela mão destas mulheres. Podeis aqui verificar que um livro não é apenas um conjunto de folhas dobradas manchadas de tinta, com riscos a que atribuímos sons e sons dos quais retiramos significados. Um livro não é apenas e tão-somente um aglomerado de palavras. É um objecto onde a beleza se acomoda ou se ausenta. Neste caso, podeis encontrá-la nas avenidas do texto, nas esquinas do recorte gráfico, nas praças da ilustração. À pergunta “o que se esconde por detrás de um nome?”, Hochman responde com verbos, inventários de acções, que vão do mínimo a uma ideia de máximo. Se «Sofia é o Sol» e basta, Maria, a última das personagens convocadas, é muito mais do que essa luz que ilumina quem a vislumbra. Porque «Maria é uma vaca, como Renata» (p. 235) e «Às vezes Maria pensa que gostaria de reencarnar num pássaro, como Camila e como Martina» (p. 238). Não há preocupações de coerência nem de concordância na descrição destas mulheres, a qual se desenvolve anaforicamente em textos que tanto podem ser contos como poemas, com frases quebradas onde a narrativa não se perde nem se esgota, automatismos e associações livres que transformam cada nome numa hipótese de mulher, cada mulher numa hipótese de universo. E o universo é uma multiplicidade de hipóteses.
   Por vezes os nomes sugerem os verbos: «Sílvia silva uma canção de Jacques Brel enquanto prepara uma mousse de chocolate» (p. 10), «Sandra sangra-se» (p. 18), «Rita ri-se» (p. 28). Noutras ocasiões, a poesia intromete-se imageticamente com divertidas conexões: «Quando Lua tinha três meses teve varicela, coçou as borbulhas e por isso ficou com marcas na cara» (p. 23). Há nomes que remetem para gente de facto, mas onde os factos surgem minados pela força lúdica da imaginação: «Frida esconde-se para ver Diego que está a pintar um mural, não sabe o que a atrai mais, se esse homem gordo, se o que ele está a pintar ou se a vertigem de ser descoberta» (p. 12). Isabel pode ser Isabel a Católica, mas tanto quanto Benedita, a minha preferida, é irredutivelmente ateia. E «Helena tem um cavalo em Tróia» (p. 34). Não ides encontrar no livro, minhas filhas, nenhuma Matilde ou Beatriz, mas se o lerdes podeis perceber que nem todos os nomes vivem sós: «Elsa tem três filhas como Violeta» (p. 142), «Violeta disfarça-se de Mickey, como Ramona, e passa o dia na praça para que as pessoas tirem fotografias com ela» (p. 117), Camila tem a mesma professora de Benedita, conhece Violeta e apaixona-se por Rosa… Entrai no mundo destes nomes e descobri-lhes os elos, as ligações, traçai com eles o mapa da imaginação que nos anima a existência. Concreto, experimental, divertido, inteligente, belo, deste livro que vos deixo bebei o gozo das múltiplas possibilidades: «Aurora escreve com sangue na parede do seu quarto uma frase que diz: / O melhor já passou» (p. 51).

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