Chegados aos 40, é inevitável que se instaure em nós o
desespero da rotina. Pensamos naqueles cujas existências foram curtas, mas
aparentemente intensas e repletas das peripécias que julgamos serem o suco da
vida: viagens, paixões, aventura, risco, limite. A solidão que cresce dentro de
um corpo arreado pela consciência do dever, a insatisfação daí advinda, a ideia
de que tudo poderia haver sido diferente mediante opções menos conformadas,
frustrantes, logra em pequenos instantes de surpresa o consolo que garante
valer a pena o esforço. Um amigo que nos chega com aquele filme que toda a vida
procurámos e não encontrámos, uma paixão inesperada que nos assoma pela janela,
um dia levado de jorro com fúrias e rompantes, aquela precipitação para o
abismo que os prazeres do corpo oferecem à mente, sol onde se aguardava negrume,
chuva onde se esperava sol, são lâminas que rompem o hábito confortando-nos no confronto com o
desespero.
A caminho dos 45, confesso-vos, já pouco me surpreende.
Dormi na rua e em hotéis de cinco estrelas, concluindo que independentemente do
lugar nada tem mais valor do que o sono pesado que nem miséria nem luxo
garantem. O sono pesado vem de andarmos bem connosco e com o mundo,
parecendo-me hoje que o desequilíbrio entre ambos seja a razão última das
insónias. Em não podendo estar de bem com o mundo, com as injustiças,
iniquidades e desigualdades universais, como poderá um homem andar de bem
consigo mesmo? Só em lhe faltando a tal consciência do dever, falta que tanto pode
redundar numa libertinagem eternamente insatisfeita como numa indolência impossível
de suportar. Mas as surpresas acontecem, e por vezes pouco mais basta do que um
livro que nos chegue inesperadamente às mãos.
Mulheres nascidas de um nome (LX Vinte Oito, Fevereiro de
2019) interrompe a rotina, abre a porta a um universo de personagens onde se
manifestam todas as contradições possíveis de imaginar dentro de um ser humano.
A ilustradora Beatriz Bagulho (n. 1997) já nos é conhecida de outras andanças. Deveis
lembrar-vos dos seus desenhos para esse Simão sem medo — Os Jardins das Cerejeiras (Douda
Correria, Outubro de 2018) com que há coisa de meses presenteei a Beatriz. O
talento é o mesmo, ainda que os motivos surjam diversos:
Quanto a Claudio Hochman (n. 1958), argentino de Buenos
Aires, chega-nos originalmente pela mão destas mulheres. Podeis aqui verificar
que um livro não é apenas um conjunto de folhas dobradas manchadas de tinta,
com riscos a que atribuímos sons e sons dos quais retiramos significados. Um
livro não é apenas e tão-somente um aglomerado de palavras. É um objecto onde a
beleza se acomoda ou se ausenta. Neste caso, podeis encontrá-la nas avenidas do
texto, nas esquinas do recorte gráfico, nas praças da ilustração. À pergunta “o
que se esconde por detrás de um nome?”, Hochman responde com verbos,
inventários de acções, que vão do mínimo a uma ideia de máximo. Se «Sofia é o
Sol» e basta, Maria, a última das personagens convocadas, é muito mais do que essa luz
que ilumina quem a vislumbra. Porque «Maria é uma vaca, como Renata» (p. 235) e
«Às vezes Maria pensa que gostaria de reencarnar num pássaro, como Camila e
como Martina» (p. 238). Não há preocupações de coerência nem de concordância na
descrição destas mulheres, a qual se desenvolve anaforicamente em textos que
tanto podem ser contos como poemas, com frases quebradas onde a narrativa não
se perde nem se esgota, automatismos e associações livres que transformam cada
nome numa hipótese de mulher, cada mulher numa hipótese de universo. E o universo é uma multiplicidade de hipóteses.
Por vezes os nomes sugerem os verbos: «Sílvia silva uma
canção de Jacques Brel enquanto prepara uma mousse de chocolate» (p. 10),
«Sandra sangra-se» (p. 18), «Rita ri-se» (p. 28). Noutras ocasiões, a poesia
intromete-se imageticamente com divertidas conexões: «Quando Lua tinha três
meses teve varicela, coçou as borbulhas e por isso ficou com marcas na cara»
(p. 23). Há nomes que remetem para gente de facto, mas onde os factos surgem
minados pela força lúdica da imaginação: «Frida esconde-se para ver Diego que
está a pintar um mural, não sabe o que a atrai mais, se esse homem gordo, se o
que ele está a pintar ou se a vertigem de ser descoberta» (p. 12). Isabel pode
ser Isabel a Católica, mas tanto quanto Benedita, a minha preferida, é
irredutivelmente ateia. E «Helena tem um cavalo em Tróia» (p. 34). Não ides
encontrar no livro, minhas filhas, nenhuma Matilde ou Beatriz, mas se o lerdes
podeis perceber que nem todos os nomes vivem sós: «Elsa tem três filhas como
Violeta» (p. 142), «Violeta disfarça-se de Mickey, como Ramona, e passa o dia
na praça para que as pessoas tirem fotografias com ela» (p. 117), Camila tem a
mesma professora de Benedita, conhece Violeta e apaixona-se por Rosa… Entrai no
mundo destes nomes e descobri-lhes os elos, as ligações, traçai com eles o mapa
da imaginação que nos anima a existência. Concreto, experimental, divertido,
inteligente, belo, deste livro que vos deixo bebei o gozo das múltiplas
possibilidades: «Aurora escreve com sangue na parede do seu quarto uma frase
que diz: / O melhor já passou» (p. 51).
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