O Poço e a Estrada — Biografia de
Agustina Bessa-Luís (Contraponto, Fevereiro de 2019) inaugura uma colecção de
biografias profusamente propagandeadas, estando já anunciados futuros volumes
sobre José Cardoso Pires, Herberto Helder, Manoel de Oliveira, Amália Rodrigues
e Natália Correia. Coube a Isabel Rio Novo (n. 1972) biografar a escritora
Agustina Bessa-Luís (n. 1922), daí resultando 503 páginas sem o apoio da
família da biografada nem do seu actual editor. A própria autora da biografia o
esclarece nos agradecimentos. É muito provável que as circunstâncias tenham
condicionado as opções tomadas, resultando esta biografia, primeiro, numa
tentativa de reconstrução das raízes a partir das personagens da própria
Agustina e, depois, num exaustivo trabalho de recolha. Setenta e nove páginas
de notas de rodapé dão conta do serviço, remetendo estas para os livros da
escritora, entrevistas, documentários, cartas, notas de imprensa, depoimentos
públicos, numa profusão de citações que parecem aceitar como premissa primeira
as próprias considerações de Agustina sobre o acto de biografar: «Nem por um
momento chego a admitir que pode ser aproximado à verdade um traço que eu
descrevo; isso era iludir os meus leitores, fazer um pastiche em que a
imaginação se prestigia e merece o seu nome. O pastiche é uma imaginação
delinquente mas apreciada pelo seu lado artesanal; é o patchwork no sentido
mais engenhoso, mais tributário da mistificação. A maior parte das biografias
são pastiches duma realidade pessoal que se vai encontrando com factos casuais.
Na verdade, os factos não são importantes numa biografia a não ser como o seu
folclore» (Agustina Bessa-Luís, in Longos Dias Têm Cem Anos. Presença de Vieira
da Silva, citada por Isabel Rio Novo em nota de rodapé na p. 419). Esta
biografia parece não querer fugir à regra enunciada, o que explica, por
exemplo, a ausência de uma cronologia e de uma bibliografia. Quem quiser saber
quais os livros publicados por Agustina e quando, então que recorra à
Wikipédia. Mesmo o Índice Onomástico não é exaustivo.
Não sendo certo, como se afirma
na nota de contracapa, que esta «biografia se lê como um romance», é claro e
assumido que em diversas circunstâncias ela apenas se fundamenta na imaginação
da biógrafa: «Imagino que, para os pais, também não fosse fácil lidar com uma
criança assim inteligente» (p. 49). Mas o mais inquietante são os processos de
identificação, anunciados logo, e de que maneira, no primeiro capítulo:
«Respirei Agustina; digo-o sem medo e sem rebuços» (p. 20). Podia ter ficado
por aqui, mas não ficou: «Digamos que não me foi difícil compreender Agustina.
Também eu, na minha pequena infância, cresci longe de outras crianças,
recolhida por longos períodos numa aldeia minhota» (p. 50). Numa viagem que fez
à Régua, teve «a impressão de seguir Agustina e de conhecer a paisagem com que
conviveu» (p. 109), brindando o leitor com verdes e ocres, «manchas vermelhas e
amarelas, papoilas e malmequeres, as flores que me provocam sempre uma alegria
infantil» (p. 109). A ela, à biógrafa. Os processos de identificação
sucedem-se, acrescentados de suposições, considerações subjectivas, conjecturas
e presunções que nada acrescentam de substancial ao que já sabemos dos
documentários e das entrevistas mencionados em rodapé.
Tal como a Agustina biógrafa conseguia
apontar na vida do biografado um momento que lhe credita a existência, também
Isabel Rio Novo o consegue relativamente a Agustina: «a premiação e a
publicação de A Sibila» (p. 183). E conhece bem a paisagem física e humana que
Agustina evoca nos pequenos textos e nos romances, percorre os mesmos sítios e
quase consegue ver as mulheres de outros séculos, e, numa espécie de êxtase
místico, quase consegue ver «Agustina, espraiando a vista sobre os telhados de
Miragaia, colhendo aquela sensação de que, no Porto, todas as ruas acabam por
descer ao rio» (p. 218). Este tipo de identificações repete-se ao longo de
capítulos que procuram seguir o rastro da biografada até ao casamento com
Albeto Luís, daqui à consagração como escritora, evocando viagens, tomadas de
posição públicas, relações com amigos (Vieira da Silva, Sophia, Eugénio…),
incursões pelo mundo da política, a relação com o cinema de Manoel de Oliveira,
os prémios. O momento do encontro absoluto dá-se a páginas 368: «Nesse dia,
vencendo a timidez, pude acercar-me de Agustina e estender-lhe um exemplar da
minha novela de estreia. Agustina agradeceu o livrinho. Não sei se chegou a
folheá-lo. Tenho uma certa pena de não o saber, mas, mais ainda, de não me
lembrar das palavras exatas da dedicatória que assinei, não porque fossem
bonitas ou interessantes, mas porque havia nelas sinceridade e enleio» (pp.
638-369). Enfim, digamos que faltou aqui algum labor de edição.
O trabalho de Isabel Rio Novo é
extenso e exaustivo, mas o estilo peca pela falta de distanciamento de um observador
que se comove ao rever a sua biografada receber, ao som do Hino da Alegria, o
Globo de Ouro de Mérito e Excelência da estação de televisão SIC. A admiração
favorece os traços de carácter, sublinhando o humor chistoso e a tendência para
a provocação, a vaidade, a absoluta dedicação ao trabalho literário, mas
aflorando apenas o lado dos afectos, não correndo o risco de penetrar no lado
obscuro de uma personalidade que obviamente o tem. Se a relação com o marido
parece a de um patrão com a secretária, se a família surge relegada para
segundo plano, por vezes com considerações cruéis sobre os talentos, ou falta
deles, de filha e neta, como avaliar a ausência de um trabalho crítico mais
profundo sobre o modo como os sentimentos e as emoções surgem ao longo da obra
publicada? O suicídio do irmão, referido a propósito da biografia dedicada a Florbela Espanca, teria sido bom ponto de partida para algo que fica por fazer,
optando-se por uma espécie de beatificação de Agustina. Se os apoios a Freitas
do Amaral, Cavaco e Santana Lopes foram opções individuais, a desastrosa passagem
pela direcção do Teatro Nacional D. Maria II não devia ter sido apenas tratada como
mero “acidente” no percurso dos cargos públicos. Para mais desagravado pela
facturação à conta de um Teatro Nacional hipotecado meses a fio a um musical de
La Féria. Vítima de velhos preconceitos? Que todas as vítimas mereçam o chofer que Agustina mereceu, mais tempo do que lhe era devido.
2 comentários:
Aguardemos agora, pacientemente, a biografia «oficial», aprovada pela família, feita pelo Rui Ramos (o teorizador das «oligarquias»).
Muito honestamente, não estou interessado. Chega-me esta. E os livros da biografada.
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