terça-feira, 11 de junho de 2019

DOIS LIVROS DE ANTÓNIO POPPE


Acolhemos a poesia de António Poppe (n. 1968) como a uma oferenda, ela dirige-se-nos sem qualquer tipo de imposição, não chega sequer a pedir que a aceitemos, oferece-se-nos, e nós ou a rejeitamos ou a acolhemos. Dois anos precisos separaram as publicações de “medicin.” (Douda Correria, Maio de 2015) e “come coral” (Douda Correria, Maio de 2017), dois anos passados aqui estamos a lê-los e a partilhar com quem nos leia o que da sua leitura nos ficou. Em ambos os casos há contextualizações que convém ter em conta, a mais relevante das quais é a declaração de uma polifonia com origens muito díspares. O primeiro paradoxo, pelo menos aparente, é o modo como na raiz dessa polifonia encontramos a experiência do silêncio. A nota que precede “come coral” disso dá conta, aí se revelando que o livro surgiu de um «retiro de meditação Vipashyana». As palavras que lemos terão sido proferidas «literalmente de cor» para um gravador após dez dias de silêncio, apresentando-se como uma impressão do silêncio naquele que as diz. À superfície surdem então as palavras sem que um qualquer sentido lógico e sintáctico as delimite, surgem expurgadas de significados semânticos precisos, surgem como uma espécie de luz que se levanta ao raiar do dia ou como o som do vento percepcionado pelo corpo entendido enquanto vibração.
   Em ambos os livros o processo assemelha-se, embora no segundo seja mais evidente até pelos efeitos ecóicos dos versos. Há sonoridades de “medicin.” que se repetem em "come coral", este mesmo título provém do livro anterior. Mais do que recordação, como previne António Poppe, trata-se de (re)impressão, ou seja, trata-se já do modo como o corpo assimilou as palavras permitindo que as mesmas fluam no sangue e na respiração. A subordinação do corpo à mente, belamente ilustrada na capa de “medicin.”, não é tanto uma subordinação como resulta numa libertação. A prática do yoga consiste precisamente nessa educação do corpo para a dança, isto é, para uma libertação daquilo que o leva ao sofrimento, daquilo que o aprisiona e fere. Assim sendo, devemos também elevar o facto de toda esta poesia nos chegar como uma manifestação rítmica, musical, onde não só as vozes se misturam, como as próprias línguas e linguagens se fundem, num processo de transmutação da palavra que me parece especialmente enriquecedor. É óbvio que neste processo encontramos jogos fonéticos típicos, resultantes de aliterações, cacofonias, aglutinações, anacolutos, embora o resultado tenha muito mais que ver com uma forma ocidental de assimilar o mantra do que com um trabalho de desconstrução gramatical.
   Estamos a falar de um discurso altamente espontâneo e livre, um discurso através do qual as imagens irrompem com configurações sonoras e luminosas que resistem a qualquer tentativa de resolução formal. Talvez faça até mais sentido falar de anti-discurso. Por isso mesmo não devemos admirar-nos daquilo a que em circunstâncias normais chamaríamos um mesmo poema surgir em ocasiões diferentes naturalmente transformado em pormenores vocabulares que estão relacionados com a espontaneidade da construção subjacente ao próprio poema: «pousa de amamentar   pedra-amante / achado o veio   entre boca e nariz» (in “medicin.”); «pausa de amamentar    desfechado aqui achado o / veio   entre boca e nariz» (in “come coral”). São vários os exemplos que podíamos dar desta transformação a que o poema é sujeito, já não entendido como fixação, palavra petrificada, mas antes oferecido como corpo vivo, fruto de uma respiração incessante.
   Ka, sílaba semente que surge em ambos os conjuntos à maneira de princípio fundador, pode tanto aludir a essa alma que ligava os homens aos deuses no antigo Egipto como a um mantra semelhante ao Om hindu, som de cuja vibração o universo surge. São sons que semeiam, são a mais primitiva origem das palavras, é na direcção dessa origem que António Poppe mergulha fazendo expandir em círculos e ciclos uma poesia diferente das demais que vão sendo publicadas entre nós. A espaços, surge uma alegoria, uma parábola, colhida entre os índios Yanomami ou na filosofia zen, mas surgem sempre inseridas num absoluto do qual não se destacam, são inerentes ao ser, são parte integrante de um todo em que cada partícula manifesta esse todo mais do que se manifesta a si mesma isoladamente. Do mesmo modo, as múltiplas vozes que se fundem nestes textos como que abdicam da sua individualidade para, fundindo-se umas nas outras, gerarem um novo corpo, uma nova e multicolorida voz. Porque o som mais vibrante desta poesia é precisamente a sua universalidade, a capacidade de aglutinar numa sílaba as tonalidades aparentemente mais antagónicas. 

2 comentários:

eremita disse...

Há muitos anos, em Nova Iorque, o Poppe disse o "Falemos de casas..." e eu acompanhei-o à guitarra. Nunca mais o vi.

hmbf disse...

Ora aí está um momento que eu teria pago para ouver.