Ao longo da vida ides ouvir muitas vezes que só a tristeza
interessa à arte, que apenas a dor e o sofrimento dão boa poesia, que a melancolia
é a raiz da criação, que a tragédia aprofunda, inquieta, desassossega, enquanto
a comédia apenas entretém. É tudo mentira. O riso abre as portas ao diabo,
deixa-o entrar e oferece-lhe guarida. A gargalhada, o sarcasmo, a sátira, o
cinismo, a ironia, são as articulações de um sistema nervoso poderosíssimo. Em havendo homens que se revoltam contra uma caricatura, não é por ser vazia de conteúdo a sua mensagem. Aprendei a admirar na arte a força de arruinar
estereótipos apontando-lhes as fissuras, fazendo implodi-los desde a fraqueza retórica
dos alicerces que os sustentam. Nada melhor que o riso para derribar
preconceitos. E isso é arte, da mais nobre e elevada que podeis imaginar. Ao
contrário da melancolia, a ironia desacomoda e esfrangalha o pano. Estendei-o sobre a mesa onde servireis a refeição do pensamento, aconselho-vos. É verdade que
a generalidade das pessoas convive melhor com o comodismo da “tadinhice” do que
com as faíscas do riso, e também é verdade que que nem sempre o riso se faz
acompanhar dos dentes todos. Dispensemos-lhe a gratuitidade. Mas pela via do
riso almejamos exemplos mais elevados e imagens mais profundas do
que tantas vezes se pretende fazer crer, atribuindo apenas às emoções
lacrimejantes o dom da reflexão. Também a tragédia resvala amiúde para o
sentimentalismo gratuito. Num e noutro campos, o que sabeis excessivo é a
gratuitidade. O que pretendo dizer-vos, minhas filhas, é que podeis crer no riso
não só enquanto motivo de descontracção, mas também, e sobretudo, como
sublimação deste gozo que é a vida. Atentai-vos: haverá ironia maior do que
esta de nascermos para morrer? Se é esse o nosso destino, aprendamos desde cedo
a rir-nos dele. Tristezas não só não pagam dívidas, como as aumentam até ao
insustentável. Tendes aqui um bom exemplo dessa grandeza que a comédia nos
proporciona. Com “As Aves” (Setembro de 2006), de Aristófanes, deu-se início à
colecção Clássicos Gregos & Latinos das Edições 70. E que começo. Já
conheceis o argumento: dois velhos agastados com a corrupção na cidade,
procuram um lugar bom para viver. Convencem as aves da sua superioridade face
aos deuses, fundando uma cidade entre o reinado dos homens e o dos deuses. Ao
reino da passarada darão o nome de Nefelocucolândia. Serão muitos os que a
visitarão, poucos ou nenhuns pelas melhores razões. E ainda que o final seja
utópico, não podemos deixar de observar nesta aventura fantástica um pretexto
de crítica social que levava tudo à frente sem apelo nem agravo: «E a todo
aquele que cria aves fechadas em gaiolas, recomendamos que as solte. Se não
obedecerem, são capturados pelas aves; e é a vossa vez de ficarem prisioneiros,
em nosso poder, a servirem de isca». O grito podia ser de liberdade, não
denunciasse os vícios que o poder arrasta para onde quer que se volte. Entre
eles, o da subjugação do outro. Com “As Aves”, minhas filhas, ireis aprender
com que linhas se cosem a ambição e o poder, exactamente as mesmas desde que
entre os homens se formaram reinados e impérios. Assim era há 2500 anos. Se pretendeis atravessar o
céu, mesmo sem qualquer intuito de colonização, sugiro-vos que apanheis o
caminho térreo do riso. É a melhor forma de lá chegar, pois assim sendo
estareis protegidas contra os manipuladores da desgraça. O riso consola
a necessidade. É valor sem igual na Terra onde os pássaros encontram descanso
para o voo.
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