segunda-feira, 22 de julho de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #22


Ao longo da vida ides ouvir muitas vezes que só a tristeza interessa à arte, que apenas a dor e o sofrimento dão boa poesia, que a melancolia é a raiz da criação, que a tragédia aprofunda, inquieta, desassossega, enquanto a comédia apenas entretém. É tudo mentira. O riso abre as portas ao diabo, deixa-o entrar e oferece-lhe guarida. A gargalhada, o sarcasmo, a sátira, o cinismo, a ironia, são as articulações de um sistema nervoso poderosíssimo. Em havendo homens que se revoltam contra uma caricatura, não é por ser vazia de conteúdo a sua mensagem. Aprendei a admirar na arte a força de arruinar estereótipos apontando-lhes as fissuras, fazendo implodi-los desde a fraqueza retórica dos alicerces que os sustentam. Nada melhor que o riso para derribar preconceitos. E isso é arte, da mais nobre e elevada que podeis imaginar. Ao contrário da melancolia, a ironia desacomoda e esfrangalha o pano. Estendei-o sobre a mesa onde servireis a refeição do pensamento, aconselho-vos. É verdade que a generalidade das pessoas convive melhor com o comodismo da “tadinhice” do que com as faíscas do riso, e também é verdade que que nem sempre o riso se faz acompanhar dos dentes todos. Dispensemos-lhe a gratuitidade. Mas pela via do riso almejamos exemplos mais elevados e imagens mais profundas do que tantas vezes se pretende fazer crer, atribuindo apenas às emoções lacrimejantes o dom da reflexão. Também a tragédia resvala amiúde para o sentimentalismo gratuito. Num e noutro campos, o que sabeis excessivo é a gratuitidade. O que pretendo dizer-vos, minhas filhas, é que podeis crer no riso não só enquanto motivo de descontracção, mas também, e sobretudo, como sublimação deste gozo que é a vida. Atentai-vos: haverá ironia maior do que esta de nascermos para morrer? Se é esse o nosso destino, aprendamos desde cedo a rir-nos dele. Tristezas não só não pagam dívidas, como as aumentam até ao insustentável. Tendes aqui um bom exemplo dessa grandeza que a comédia nos proporciona. Com “As Aves” (Setembro de 2006), de Aristófanes, deu-se início à colecção Clássicos Gregos & Latinos das Edições 70. E que começo. Já conheceis o argumento: dois velhos agastados com a corrupção na cidade, procuram um lugar bom para viver. Convencem as aves da sua superioridade face aos deuses, fundando uma cidade entre o reinado dos homens e o dos deuses. Ao reino da passarada darão o nome de Nefelocucolândia. Serão muitos os que a visitarão, poucos ou nenhuns pelas melhores razões. E ainda que o final seja utópico, não podemos deixar de observar nesta aventura fantástica um pretexto de crítica social que levava tudo à frente sem apelo nem agravo: «E a todo aquele que cria aves fechadas em gaiolas, recomendamos que as solte. Se não obedecerem, são capturados pelas aves; e é a vossa vez de ficarem prisioneiros, em nosso poder, a servirem de isca». O grito podia ser de liberdade, não denunciasse os vícios que o poder arrasta para onde quer que se volte. Entre eles, o da subjugação do outro. Com “As Aves”, minhas filhas, ireis aprender com que linhas se cosem a ambição e o poder, exactamente as mesmas desde que entre os homens se formaram reinados e impérios. Assim era há 2500 anos. Se pretendeis atravessar o céu, mesmo sem qualquer intuito de colonização, sugiro-vos que apanheis o caminho térreo do riso. É a melhor forma de lá chegar, pois assim sendo estareis protegidas contra os manipuladores da desgraça. O riso consola a necessidade. É valor sem igual na Terra onde os pássaros encontram descanso para o voo.  

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