quinta-feira, 4 de julho de 2019

ACERCA DA POESIA




haveria algumas coisas a dizer /
que ninguém a lê muito /
que são poucos esses ninguém /
que o mundo inteiro está com o tema da crise mundial / e

com o tema de comer diariamente / trata-se
de um assunto importante / lembro-me
de quando o tio Juan morreu de fome /
dizia que não se lembrava de comer e não havia problema /

mas o problema veio depois /
não havia dinheiro para o caixão /
e quando finalmente passou o camião municipal para o levar
o tio juan parecia um pequeno pássaro /

os do município observaram-no com desprezo ou desdém / murmuravam
que estão sempre a dizer mal deles /
que eram homens e enterravam homens / e não
pequenos pássaros como o tio juan / especialmente
porque o tio foi toda a viajem a cantar piu-piu até ao crematório municipal /

e isso pareceu-lhes falta de respeito e sentiam-se muito ofendidos /
e quando lhe davam uma chapada para que calasse a boca /
o piu-piu voava pela cabine do camião e eles
sentiam o piu-piu dentro da cabeça / o

tio juan era assim / gostava de cantar /
e não via por que seria a morte motivo para não cantar /
entrou no forno a cantar piu-piu / as cinzas saíram e piaram um pouco /
e os funcionários municipais olharam envergonhados para os sapatos cinzentos / mas

voltando à poesia /
os poetas agora passam-na muito mal /
ninguém os lê muito / são poucos esses ninguém /
o ofício perdeu prestígio / cada dia é mais difícil para um poeta

conseguir o amor de uma rapariga /
ser candidato a presidente / que algum merceeiro lhe fie /
que um guerreiro consiga façanhas para que ele as cante /
que um rei lhe pague cada verso com três moedas de ouro /
e ninguém sabe se assim é porque acabaram as raparigas / os merceeiros / os guerreiros / os reis
ou simplesmente os poetas /
ou as duas coisas aconteceram e é inútil
maçar a cabeça a pensar no assunto /

lindo é saber que alguém pode cantar piu-piu
nas mais raras circunstâncias /
tio juan depois de morto / eu agora
para que me ames /

Juan Gelman, versão de HMBF a partir do original coligido por Marta Ferrari, in Antología – La poesia del signo XX en Argentina, vol. 7 da colecção La Estafeta del Viento, dirigida por Luis García Montero e Jesús García Sánchez, Visor Libros, 2010, pp. 309-311.

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