Acredito no progresso; acredito que há culturas
superiores a outras; acredito que o multiculturalismo assolapado desembocou
numa guetização nefasta em certos países ocidentais; acredito que a cultura que
produziu os Direitos Universais é infinitamente superior ao wahhabismo ou às
tradições ancestrais de mutilação genital feminina; e acredito que existe
demasiada complacência em relação ao tratamento das mulheres nalgumas
comunidades.
Estas palavras de João Miguel Tavares são elucidativas da
dificuldade que ainda existe em falar de certas matérias sem rapidamente resvalarmos
em profissões de fé. Num artigo supostamente apreciável, por ter a coragem de
criticar um nojo de artigo assinado por «uma intelectual consagrada» — expressão
especialmente infeliz no caso em apreço —, João Miguel Tavares declara-se
progressista contra o conservadorismo moralizante da senhora historiadora para
dizer isto: «há culturas superiores a outras».
A premissa é em si mesma problemática por nos obrigar a ponderar
quem possa ser a mente superior a quem devamos confiar a hierarquização das
culturas. Confiamos uma coisa dessas a Donald Trump? A um Jair Bolsonaro? Que
cultura superior terá alimentado este par de jarras? Enfim, a questão teria
pano para mangas. Sem nos alongarmos, basta olhar para a História para pensar
em culturas superiores que produziram superiores máquinas de morte: da
globalização da escravatura às máquinas de extermínio dos nazis, da bomba atómica aos
mecanismos de dizimação da Natureza, pode o freguês aviar-se à vontadinha no
seu superior hipermercado.
Eu, que também acredito no progresso, julgo que não há
nada de superior em nos julgarmos superiores aos outros. Aliás, se há matéria
progressista em que devamos acreditar é precisamente nessa ideia de que as
culturas se constroem diariamente. Uma cultura é um corpo vivo que avança e
recua, onde os valores se transformam e se cultivam, fortalecendo-se uns,
reivindicando-se outros, num diálogo vivo e desafiante entre teses oponentes. Depois, à força da lei impõem-se limites que no seu tempo próprio se
consideram razoáveis até serem julgados anacrónicos e obsoletos. Está a ficar
chato o discurso.
O problema é andarmos a ensinar nas escolas que o
etnocentrismo cultural é mau, que o multiculturalismo obriga a um esforço de
entendimento do outro, que o relativismo cultural não significa baixar as
calças ao outro, obriga a um trabalho atento e crítico de compreensão. Andamos
a ensinar que é esse o bom caminho, mas depois aparecem-nos nos jornais e nas
rádios e nas televisões estas «intelectuais consagradas» de uma “cultura
superior” a estragarem tudo. Ou nem tudo. Foi publicada, o que não é mau sinal.
Tem sido criticada, o que é excelente sinal. Esperemos agora que o pântano do
politicamente correcto não a impeça de trabalhar como a certos cartoonistas,
ainda que os seus bonecos sejam mais ofensivos (precisamente por não se tratar
de bonecos, mas de textos supostamente sérios assinados por uma "intelectual consagrada").
O que quero dizer é, e para sintetizar, que dá sempre
jeito ter à mão uma «intelectual consagrada» em quem possamos malhar, levando
de arrasto, já agora, todas as mentes superiores que contribuíram para a sua
consagração. É que o país está mesmo a abarrotar de consagrados com mentalidade
de alimárias, exemplos não faltam.
3 comentários:
A questão está nisso mesmo: na hierarquização de tudo que corrompe à partida não apenas esse trabalho de compreensão de que falaste mas uma simples existência acabada de nascer. Há tantos factores de acaso para determinar quem é “melhor” que quem e em que contextos, que procurar dominá-los é mesmo uma vaga questão de fé, com sua inevitável prepotência. Há hoje nesse mesmo jornal uma “opinião” que fornece pistas de longe mais promissórias de que esses dois que referiste: “O problema não é conhecer a realidade, mas transformá-la. Por melhor que seja, nenhuma política resiste aos preconceitos de quem a executa ou dos seus beneficiários. O diferencial de tratamento por motivos étnicos, de género, de opção sexual e outros continuará presente ou latente se não trilharmos caminhos que são longos, de preferência resistindo às tentações de condescendência, de mitigação ou exacerbação, consoante os interesses.” Marisa Morais foi quem escreveu isto. Desconheço quem seja tal como desconhecia quem eram esses que ainda pensam com fitas métricas a medir cabeças.
no excerto que cita, joão miguel tavares compara aquilo que considera ser a cultura superior, exemplificando essa superioridade com uma das suas melhores produções, os direitos universais, com os piores produtos - o wahaabismo e a mutilação genital feminina - da cultura que considera interior. não diz directamente que "a cultura cristã é superior à islâmica" ou coisa do género, sabe que isso daria muitos likes no facebook mas seria suicídio profissional, pelo menos para quem quer frequentar no mainstream opinatório rap-mexia e não debater bola com o andré ventura na cmtv.
ou seja, compara o todo com a parte. compara o seu magnífico carro de 5 lugares com o pneu furado do carro do vizinho.
podia comparar em ambas as "culturas" e hierarquizar, se assim desejasse, os feitos na astronomia e medicina, ou quem matou mais escravos em nome de deus ou do produto interno bruto, por exemplo. há quem se divirta a comparar por exemplo quem matou mais, o nazismo ou o comunismo. quem marcou mais golos, messi ou ronaldo, quem tem mais prémios nobel, etc... mas isto seria estúpido. se comprar o número de golos dos jogadores de futebol e prémios atribuídos por suecos é estúpido, comparar culturas ou hierarquizar é... é o que é. e se nem as culturas se compara mas apenas o "pior" com o "melhor" de cada uma, então estamos perante...
Estive a ler o artigo da Marisa Morais. Muito bom.
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