CIGARRAS
Boa noite.
Silêncio.
Os meus pais dormiam
emendavam.
Em casa todos dormiam
e nas casas vizinhas.
Apenas estavam acordados umas cigarras
e a criança que eu era.
Algo palpitava na obscuridade.
E esses sons breves e regulares?
Um forte
e dois fracos.
Será uma dança nocturna
ou um telhado a gotejar suas lamentações?
O mugido distante do comboio
apoderava-se da obscuridade.
A almofada apenas sustentava a minha cabeça.
Sim, mais uma vez
o mais meu do dia era a noite.
Abandonava a mortalha de lençóis
e sigiloso
levava o meu corpo até ao pátio
para escutar o chafariz
as plantas
que respiravam à vontade.
As estrelas ao alcance da minha mão
a cruz do sul
as três marias
os sete cabritos
observávamo-nos longamente.
Elas eram elas
eu era eu.
Atravessávamos a noite.
O mundo fez o seu trabalho
a minha astronomia é um pouco mais complexa
e agora sei que não eram cigarras, não
eram apenas grilos
só um ou dois grilos.
E já não há quem durma na casa
não há danças
nem telhados
nem comboios.
Não há lamentações.
Não há casa.
Mas ainda
o mais meu do dia permanece na noite
e a almofada
apenas sustenta a minha cabeça.
Há que dar ao mundo
o que é do mundo
e ao ser
o que é do ser.
Abro a janela deste décimo segundo andar
as estrelas continuam onde estavam
observamo-nos longamente.
Sinto que atravessamos a noite.
Algo aqui palpita na obscuridade.
Eram cigarras, sim
eram cigarras.
Gianni Siccardi, versão de HMBF a partir do original
coligido por Marta Ferrari, in Antología – La poesia del signo XX en
Argentina, vol. 7 da colecção La Estafeta del Viento, dirigida por Luis
García Montero e Jesús García Sánchez, Visor Libros, 2010,pp. 324-326.
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