terça-feira, 20 de agosto de 2019

HÁ RIOS QUE NÃO DESAGUAM A JUSANTE



   “Há rios que não desaguam a jusante” (Companhia das Ilhas, Outubro de 2018) surgiu com a mácula do “romance de estreia de poeta tardio”, agravada pelo selo editorial de uma casa insular a remar contra a maré. Portanto, tinha tudo para dar mal. Passados 10 meses sobre a publicação, o manto de silêncio estendido sobre este romance de quase 500 páginas é sinal inquestionável de um descaso metódico. “Se me é permitido prolongar de maneira muito imediata” as razões deste sinal, arrisco especular que o silêncio não seria o mesmo se o romance de Nuno Dempster (n. 1944) tivesse sido publicado por uma editora ligada a um grande grupo editorial ou ao pequeníssimo grupo de afectos disseminado pela imprensa da especialidade. Sendo as coisas como são, terá o autor de se contentar com a opinião impressionista e nada rentável dos leitores. Sou um deles.
   A narrativa começa em 1961 e coloca no centro de atenções um tal de coronel Pierre Latour. Tudo girará em torno deste nome, embora nem tudo a ele se confine. Não podemos sequer afiançar que ele seja a personagem central, já que outras há igualmente determinantes na construção de um puzzle cuja paisagem é essencialmente a do mal. Brigitte Clemanceau, por exemplo, tem uma passagem fugaz nesta história, mas deixa a sua marca pela sensibilidade e respectiva capitulação. Dempster está mais interessado em explorar os domínios da maldade humana, levando-nos de viagem por diversos dos seus territórios. O coronel é neto bastardo de Leopoldo II da Bélgica, herdeiro de uma fortuna incomensurável que se encarrega de acrescentar à conta de traficâncias várias. A exploração de colónias e ex-colónias em África é só uma delas. A certa altura encontrá-lo-emos como mercenário na Angola portuguesa, protegido pela PIDE e com as mãos cheias de sangue e de diamantes. Deixará raízes em Portugal, uma filha ilegítima criada num convento e protegida à distância pela riqueza do progenitor. O mal corre-lhe nas veias.
   Estes elos permitem ao autor atravessar gerações sem perder o foco do essencial, a disseminação da maldade e da torpeza por diversas estâncias do mundo dos homens: da aristocracia à burguesia belgas, da república portuguesa (antes e depois da revolução) às ordens monásticas, nada escapa. Religião, política, economia, os chamados pilares das sociedades desenvolvidas, surgem neste livro corroídos pela crueldade e pelo vício. Podemos julgar que no curso da narrativa, aqui e acolá, encontramos desenvolvimentos excessivos ou saltos menos compreensíveis, que o protagonismo de algumas personagens é exagerado ou deficiente relativamente a outras, mas no final a imagem que fica é a de uma humanidade abastardada no que de mais execrável possa o conceito conter. E se Carlota, a filha ilegítima de Latour, nos parece enquanto personagem algo inconsistente, já a avó do coronel, de seu nome Louise-Marie, é de uma riqueza inquestionável. O panorama do século XIX oferecido nos capítulos dedicados a Louise-Marie d’Ursel Latour, «uma nobre que soube multiplicar-se em burguesa e em filha de gente de lavoura, talvez pioneira na Bélgica de uma nova indústria» (p. 213), permite-nos compreender com outra clareza histórica a raiz do “lado reles da natureza humana” indagada neste livro, um lado reles ornamentado pela ostentação que deixa no rastro histórias de servidão e de miséria.
   É precisamente com esta miséria que o romance termina na figura de um tipo caído em desgraça, muito conveniente a um mundo actual perdido nos labirintos de jogadas empresariais e tacticismos jurídicos. Na rua descrita a sopa dos pobres não é literal, adquire o estatuto de alegoria ao fim de 400 páginas de gestos nada louváveis. Não é o corpo quem se alimenta daquela sopa, mas sim a moral. Ao corpo de quem tem fome física sempre vale uma sopa quente, mas à subnutrição moral não há sopa que valha. O cadáver de um sem-abrigo que aparece ao seu companheiro de rua, deixando-o indeciso no nojo por não conseguir determinar a causa da agonia, dá-nos uma boa imagem de um mundo expurgado de sentimento onde a compaixão perde sentido. O homem a desaprender de ser homem é isto mesmo, cresce na direcção de uma frieza que afasta o outro do caminho e tudo concentra na avidez do próprio estômago. Ainda assim, resta ao leitor uma certa comiseração pelo fracasso individual: «As vascas sacodem-me do fundo do estômago. Já não sai nada, não sai bílis nem sequer saliva sai, é como se bolçasse o vazio da minha vida, exacerbando a dor até me raspar os ossos» (p. 473).

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