“Há rios que não desaguam a jusante” (Companhia das
Ilhas, Outubro de 2018) surgiu com a mácula do “romance de estreia de poeta
tardio”, agravada pelo selo editorial de uma casa insular a remar contra a
maré. Portanto, tinha tudo para dar mal. Passados 10 meses sobre a publicação,
o manto de silêncio estendido sobre este romance de quase 500 páginas é sinal
inquestionável de um descaso metódico. “Se me é permitido prolongar de maneira
muito imediata” as razões deste sinal, arrisco especular que o silêncio não
seria o mesmo se o romance de Nuno Dempster (n. 1944) tivesse sido publicado
por uma editora ligada a um grande grupo editorial ou ao pequeníssimo grupo de
afectos disseminado pela imprensa da especialidade. Sendo as coisas como são,
terá o autor de se contentar com a opinião impressionista e nada rentável dos
leitores. Sou um deles.
A narrativa começa em 1961 e coloca no centro de atenções
um tal de coronel Pierre Latour. Tudo girará em torno deste nome, embora nem
tudo a ele se confine. Não podemos sequer afiançar que ele seja a personagem
central, já que outras há igualmente determinantes na construção de um puzzle
cuja paisagem é essencialmente a do mal. Brigitte Clemanceau, por exemplo, tem
uma passagem fugaz nesta história, mas deixa a sua marca pela sensibilidade e
respectiva capitulação. Dempster está mais interessado em explorar os domínios
da maldade humana, levando-nos de viagem por diversos dos seus territórios. O
coronel é neto bastardo de Leopoldo II da Bélgica, herdeiro de uma fortuna
incomensurável que se encarrega de acrescentar à conta de traficâncias várias.
A exploração de colónias e ex-colónias em África é só uma delas. A certa altura
encontrá-lo-emos como mercenário na Angola portuguesa, protegido pela PIDE e
com as mãos cheias de sangue e de diamantes. Deixará raízes em Portugal, uma
filha ilegítima criada num convento e protegida à distância pela riqueza do
progenitor. O mal corre-lhe nas veias.
Estes elos permitem ao autor atravessar gerações sem
perder o foco do essencial, a disseminação da maldade e da torpeza por diversas
estâncias do mundo dos homens: da aristocracia à burguesia belgas, da república
portuguesa (antes e depois da revolução) às ordens monásticas, nada escapa. Religião, política, economia, os chamados pilares das sociedades desenvolvidas,
surgem neste livro corroídos pela crueldade e pelo vício. Podemos julgar que no
curso da narrativa, aqui e acolá, encontramos desenvolvimentos excessivos ou
saltos menos compreensíveis, que o protagonismo de algumas personagens é
exagerado ou deficiente relativamente a outras, mas no final a imagem que fica
é a de uma humanidade abastardada no que de mais execrável possa o conceito
conter. E se Carlota, a filha ilegítima de Latour, nos parece enquanto
personagem algo inconsistente, já a avó do coronel, de seu nome Louise-Marie, é
de uma riqueza inquestionável. O panorama do século XIX oferecido nos capítulos
dedicados a Louise-Marie d’Ursel Latour, «uma nobre que soube multiplicar-se em
burguesa e em filha de gente de lavoura, talvez pioneira na Bélgica de uma nova
indústria» (p. 213), permite-nos compreender com outra clareza histórica a raiz
do “lado reles da natureza humana” indagada neste livro, um lado reles
ornamentado pela ostentação que deixa no rastro histórias de servidão e de miséria.
É precisamente com esta miséria que o romance termina na
figura de um tipo caído em desgraça, muito conveniente a um mundo actual perdido
nos labirintos de jogadas empresariais e tacticismos jurídicos. Na rua descrita
a sopa dos pobres não é literal, adquire o estatuto de alegoria ao fim de 400
páginas de gestos nada louváveis. Não é o corpo quem se alimenta daquela sopa,
mas sim a moral. Ao corpo de quem tem fome física sempre vale uma sopa quente,
mas à subnutrição moral não há sopa que valha. O cadáver de um sem-abrigo que
aparece ao seu companheiro de rua, deixando-o indeciso no nojo por não
conseguir determinar a causa da agonia, dá-nos uma boa imagem de um mundo
expurgado de sentimento onde a compaixão perde sentido. O homem a desaprender
de ser homem é isto mesmo, cresce na direcção de uma frieza que afasta o outro
do caminho e tudo concentra na avidez do próprio estômago. Ainda assim, resta
ao leitor uma certa comiseração pelo fracasso individual: «As vascas sacodem-me
do fundo do estômago. Já não sai nada, não sai bílis nem sequer saliva sai, é
como se bolçasse o vazio da minha vida, exacerbando a dor até me raspar os
ossos» (p. 473).
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