Que se incendeiem as pedras debaixo dos teus pés,
que deixes um rasto de cinza a pedra ardida
e que por entre lajes que pisas
não volte a nascer a erva dos dias.
Caiam os pássaros, supurem os frutos amadurecidos,
sequem os rios, recuem os mares, ganam os cães,
ericem-se os felinos, arqueados como barcos encalhados
na praia fustigada pela tormenta que te escolta.
À passagem dos cemitérios,
que todos os mortos se levantem para te saudar.
Galopem os ventos de encontro às falésias,
ergam-se as ondas à altura dos faróis,
e seja tal o bramido que os ouvidos sangrem.
Que tudo seja ruína e estertor à tua passagem.
E que mesmo assim venhas, renovando as tuas promessas,
exibindo o teu brasão, desdobrando o teu véu diáfano
sobre as flores da ocultação.
Destituído de sinais, porém, vem aquele que fermenta nas
caves
onde às vezes também descem os nossos corações.
João Moita (n. 1984), in Uma Pedra sobre a Boca (Guerra
& Paz, Maio de 2019). À estreia em 2009 com “O vento soprado como sangue”
(Cosmorama), seguiram-se dois livros, “Miasmas” (Cosmorama, 2010) e “Fome”
(Enfermaria 5, 2015), todos amplamente revistos no volume “Uma Pedra sobre a
Boca” (Guerra & Paz, Maio de 2019). Em nota final a esta edição o próprio
autor refere-se a uma refundição dos primeiros livros, a qual parece tornar
evidente uma inquietação metafísica que se manifesta numa relação de dúvida com Deus. Sem nunca deixar de ser tema, o conceito de Deus surge em poemas muito
breves associado a um léxico onde são recorrentes as ideias de ausência,
silêncio, espera, sede íntima de um coração exangue. A
brevidade destes poemas depura a linguagem até um clarão que podemos dizer semelhante
ao que fica após a passagem do relâmpago. Metafórica, com uma carga simbólica
fortemente ligada aos textos bíblicos, a poesia de João Moita distingue-se
ainda pelas imagens violentas e pelo recurso a uma materialização dos domínios
do espírito através de conexões aos órgãos corporais. A sede e a fome são
espirituais, a morte um horizonte que não resolve a dúvida. O tema da fé pode,
portanto, resumir-se num dístico: «Em instâncias da penúria / a tangente da
fé». Alguns dos poemas finais surgem em prosa, como que sinalizando uma
metamorfose espiritual que o poema acompanha. A cidade (de Deus?) distancia-se à
medida que o campo se aproxima, podendo neste movimento ser vislumbrada uma
inclinação para a simplicidade da Natureza em detrimento dos complexos edifícios do
sagrado.
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