quarta-feira, 21 de agosto de 2019

[Que se incendeiem as pedras debaixo dos teus pés]




Que se incendeiem as pedras debaixo dos teus pés,
que deixes um rasto de cinza a pedra ardida
e que por entre lajes que pisas
não volte a nascer a erva dos dias.
Caiam os pássaros, supurem os frutos amadurecidos,
sequem os rios, recuem os mares, ganam os cães,
ericem-se os felinos, arqueados como barcos encalhados
na praia fustigada pela tormenta que te escolta.
À passagem dos cemitérios,
que todos os mortos se levantem para te saudar.
Galopem os ventos de encontro às falésias,
ergam-se as ondas à altura dos faróis,
e seja tal o bramido que os ouvidos sangrem.
Que tudo seja ruína e estertor à tua passagem.
E que mesmo assim venhas, renovando as tuas promessas,
exibindo o teu brasão, desdobrando o teu véu diáfano
sobre as flores da ocultação.

Destituído de sinais, porém, vem aquele que fermenta nas caves
onde às vezes também descem os nossos corações.


João Moita (n. 1984), in Uma Pedra sobre a Boca (Guerra & Paz, Maio de 2019). À estreia em 2009 com “O vento soprado como sangue” (Cosmorama), seguiram-se dois livros, “Miasmas” (Cosmorama, 2010) e “Fome” (Enfermaria 5, 2015), todos amplamente revistos no volume “Uma Pedra sobre a Boca” (Guerra & Paz, Maio de 2019). Em nota final a esta edição o próprio autor refere-se a uma refundição dos primeiros livros, a qual parece tornar evidente uma inquietação metafísica que se manifesta numa relação de dúvida com Deus. Sem nunca deixar de ser tema, o conceito de Deus surge em poemas muito breves associado a um léxico onde são recorrentes as ideias de ausência, silêncio, espera, sede íntima de um coração exangue. A brevidade destes poemas depura a linguagem até um clarão que podemos dizer semelhante ao que fica após a passagem do relâmpago. Metafórica, com uma carga simbólica fortemente ligada aos textos bíblicos, a poesia de João Moita distingue-se ainda pelas imagens violentas e pelo recurso a uma materialização dos domínios do espírito através de conexões aos órgãos corporais. A sede e a fome são espirituais, a morte um horizonte que não resolve a dúvida. O tema da fé pode, portanto, resumir-se num dístico: «Em instâncias da penúria / a tangente da fé». Alguns dos poemas finais surgem em prosa, como que sinalizando uma metamorfose espiritual que o poema acompanha. A cidade (de Deus?) distancia-se à medida que o campo se aproxima, podendo neste movimento ser vislumbrada uma inclinação para a simplicidade da Natureza em detrimento dos complexos edifícios do sagrado.  

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