Com selecção e introdução de Raquel Nobre Guerra, a poeta
brasileira Ana Martins Marques (n. 1977) apresenta-se aos leitores portugueses
com a antologia “Linha de Rebentação” (Douda Correria, Abril de 2019). A
recolha contempla todos os livros publicados anteriormente pela autora: “A vida
submarina” (2009), “Da arte das armadilhas” (2011), “O livro das semelhanças”
(2015), “Duas Janelas” (2016) e “Como se fosse a casa (uma correspondência)” (2017).
Com formação académica na área da literatura, Ana Martins Marques não foge aos
padrões de uma poesia contemporânea empenhada na sedução do leitor através do
recurso a técnicas retóricas bastante comuns. O uso recorrente da anáfora é o
mais óbvio desses recursos, mormente nos poemas de “O livro das semelhanças”. Também muito frequente nesta poesia é a reflexão que o
poema opera acerca da sua própria natureza. Logo no primeiro é uma
âncora pesada, afunda. Todos os textos seguintes referem-se, de um modo ou de
outro, ao próprio poema, decifrando-lhe o sentido, demarcando-o da realidade,
oferecendo-lhe autonomia, caracterizando-o. Nos primeiros sete aqui coligidos a
palavra poema destaca-se enquanto ponto cardeal de uma reflexão posteriormente aberta
a temas domésticos e assuntos amorosos. Tudo sem feridas de maior, discurso
sedutor e limpo. Algumas epígrafes e alusões permitem-nos traçar o mapa de
influências por detrás desta poesia, a qual mereceu o terceiro lugar do Prémio
Oceanos com “O livro das semelhanças” (2015). Repare-se como os próprios
títulos desse livro ironizam a construção do objecto em causa, redundando em
exercícios pouco mais do que tecnicamente agradáveis:
Poema de trás para frente
A memória lê o dia
de trás para frente
acendo um poema em outro poema
como quem acende um cigarro no outro
que vestígio deixamos
do que não fizemos?
como os buracos funcionam?
somos cada vez mais jovens
nas fotografias
de trás para frente
a memória lê o dia
Professor de Literatura, Eucanaã Ferraz (n. 1961) começou
a publicar na década de 1990. Várias vezes premiado, viu a sua poesia reunida
em 2016 pela Imprensa Nacional — Casa da Moeda. “Retratos com Erro”
(Tinta-da-China, Maio de 2019) coloca em xeque, de um modo altamente irónico, a possibilidade do poema enquanto
retrato. Numa das estâncias de “Autobiografia” lê-se o seguinte: «Depois trocou
tudo por espelhos. / Depois perdeu. / Depois vieram outros espelhos. / Depois
se cortou» (p. 8). A poesia de Eucanaã Ferraz desmonta a tirania da dualidade, transcendendo
as margens que impõem relações unívocas entre o corpo e o reflexo, o amante e o
amado, o eu e o outro. A ilusão, o equívoco, o absurdo, a fantasia, a distorção,
contribuem para esse trabalho de desmontagem com suas lógicas invertidas. À
normalidade contrapõe-se a aberração, à ordem contrapõe-se a desordem, ganhando
forma o nonsense num mundo do qual já pouco se espera de sentido: «Vim ao mundo
para escrever sobre o rapaz / que se apaixonou pelo detector de fumaça no
quarto do hotel» (p. 36). Os poemas de Eucanaã Ferraz não são meros exercícios
académicos, mergulham desesperadamente no mundo para se desdobrarem em retratos
anormais desse mesmo mundo. A ironia está em que é precisamente o defeito
aquilo que melhor convém a um retrato da realidade. Memórias misturam-se com
observações delirantes, num roteiro que leva à solidez do poema enquanto
terreno desta desordem: «Interruptores de hotel me irritam. / Filósofos me
interruptam» (p. 66). No final, o poema resulta enquanto auscultação de um
mundo febril. Expurgado de excrescências e de detritos, por não ser sua intenção
fotografar, mas sim reflectir, o erro nestes retratos não resulta de uma lógica
dividida entre verdadeiro e falso, mas antes da consciência de uma limitação
que afecta toda a linguagem:
FOTO
Eis o retrato sem nenhum retoque:
agora é o tempo da canção imóvel
sob a sombra do teu rosto assim quieto
o que era o sol agora é sono e tédio
o que vibrava agora é vidro opaco
agora é o tempo do verso estragado
pela ilusão de nos bastarmos nele
a madrugada se apagou na pele
o meu carinho agora é um gesto seco
é o teu silêncio que me diz é o tempo
de um céu aberto céu sem céu o certo
é fecharmos as portas esquecermos
a hora é grande agora e nos separa
por letras mortas como um dicionário
entre os teus dedos foram-se as cidades
e há muitas pedras nos meus olhos áridos.
Este o retrato sem nenhum retoque.
À Flan de Tal associamos a publicação da Flanzine,
revista apostada num diálogo multidisciplinar com ligação directa aos fanzines.
Surge agora também como editora de uma nova colecção de poesia intitulada elemeNtário,
assim chamada por ser propósito dos editores desafiarem autores convidados a
escreverem tendo como ponto de partida um elemento da Tabela Periódica.
A Alberto Lins Caldas (n. 1957) coube “Tântalo” (Flan de
Tal, Agosto de 2019), optando o autor por uma estrutura dramática que recupera
a figura mitológica do rei que deu origem à expressão “suplício de Tântalo”.
Condenado a não poder saciar fome e sede, o sujeito poético nestes poemas de
Lins Caldas confunde-se com um condenado para a eternidade. Além da
estrutura, um dos aspectos que logo impressiona o leitor é o tratamento dado à
língua e o modo como esta implode no interior dos poemas. Destas implosões
sobra uma linguagem estilhaçada, as palavras ora se desfazem, ora se aglutinam,
num processo que parte de um princípio desde logo anunciado: «•destroçando
tudo pra se refazer amanhã•» (p. 7). Na fábula de contornos políticos assim montada, os poemas produzem
efeitos de saturação e irrisão que não tentam disfarçar o cenário de caos para
que remetem. Do caos ressumam sentimentos de agonia, dor, violência, crueldade,
solidão, fazendo-se incluir uma crítica forte ao alheamento e à alienação das
massas face ao mundo que as corrói: «•alegre fazemos festas vamos as praias• / •fazemos
versinhos e canções ao amor• / •dizemos ?é ilusão como rolabostas não• / •gigantes
adormecidos no verde oliva• / •oceanos povo heróico e vara no anil• / •sombras
q mentem tomam cervejas• / •jamais enrolabostas comendo pulgas•» (p. 22). Sem tácticas nem preocupações retóricas, Alberto Lins Caldas vem
de há muito construindo um edifício poético isolado e exilado. A sua poesia
resiste à interpretação vulgar, não busca um leitor passivo, exige confronto e
até distanciamento. A melhor imagem para isso talvez seja a que o próprio
desenha numa estrofe de um poema quixotesco: «•meu caro sancho• / •quando o abismo
do inferno• / •inverte com o paraiso• / •e fomos nos• / •q deixamos esse horror•
/ •não nos cabe senão lutar• / •mas sabendo q ja perdemos•» (p. 52).
Na mesma colecção damos com “Cloro” (Flan de Tal, Agosto de 2019),
de Gabriela Gomes (n. 1987). Altamente experimental, este é um livro em busca
de si mesmo, feito a partir do processo subjacente à sua construção. Nele cabem
imagens, citações de origem diversa, ciência, História, diálogos nas redes sociais,
memórias da infância. Do cloro enquanto arma de destruição massiva, gás tóxico
usado na I Grande Guerra e na Síria, ao cloro como produto de limpeza e
desinfecção, passado e presente misturam-se num puzzle montado para chegar ao
momento actual brasileiro. Poema-livro, livro-poema, o resultado é uma espécie
de curta-metragem em papel com uma «b(ode) ao cloro» por epílogo. No final
mencionam-se as fontes, entre as quais podemos encontrar poetas, músicos,
artistas plásticos. A multidisciplinaridade é clara.
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