domingo, 15 de março de 2020

12. TRANSIGÊNCIA


   A soberana virtude de transigir incrementa o fugir de mui nobres ideais. Dos outros e, por malvadez da incógnita, também do próprio transigente.
   O Joãozinho, por exemplo, era um novelista prometedor.  Para atingir rapidamente a celebridade, o Joãozinho aprendeu a transigência sistemática. O Joãozinho era esperto e português.
   Um dia o editor disse-lhe: 
   — Joãozinho, serás um génio se respeitares os eclesiásticos.
   O Joãozinho escreveu páginas repletas de respeito pelos eclesiásticos.
   — Joãozinho, isto não chega! Serás um génio se respeitares os militares.
   O Joãozinho fez ombro-caneta e ritmou a prosa a roque de caixa.
   — Joãozinho, os tempos mudaram! Serás um génio se respeitares o eurocomunismo.
   O Joãozinho mergulho na bacia do Mediterrâneo e emergiu com algumas ânforas estilísticas atracadas ao membro.
   — Agora, Joãozinho, cala a tua concubina.
   A concubina do Joãozinho tinha a memória cheia de trapaças políticas.
   — Como posso eu calar uma mulher? — perguntou o Joãozinho, transpirando.
   — Joãozinho, promove-a a escritora. Enquanto ela escrever, não fala.
   Assim se fez. De tanto puxar pela cabeça, a concubina do Joãozinho perdeu a memória. O Joãozinho, contentíssimo, foi nomeado secretário de Estado do ferro velho.
   — Joãozinho — disse o Grande Chefe —, vais transigir mais uma vez. Isto é, cala-te!
   — Mas, Excelência, eu sou um escritor...
   — Eras! — rugiu a Excelência — Eu também fui um homem e agora sou apenas um porco. Todos temos de nos sacrificar pelo nosso povo.
   — Mas os comunistas, Excelência, podem falar. Os fascistas, Excelência, podem falar. A anarquia, Excelência, não pára de gritar. A ditadura, Excelência, não pára de ameaçar...
   — Por isso mesmo, Joãozinho, tu tens de estar calado. O teu silêncio garante a promoção intelectual da tua concubina, percebes? Ou te calas, ou ficas sem concubina!
   O Joãozinho sofria de paixão serôdia. Ela tinha vinte e cinco e o Joãozinho cinquenta, embora aparentasse sessenta e nove.
   — Ainda não percebeste, Joãozinho — disse afavelmente a Excelência —, que és um óptimo tubo de ensaio? Não, não é isso que pensas... Não te invejo o tubo; tenho mais grossos entre os meus correligionários.
   O Joãozinho deu em andar de maus fígados. Escritor recalcado, a palavra «tubo» rasgava-lhe a consciência artística. Mas cultivava, inabalável, a transigência.
   Quando se descobriu tubo sem necessidade de mais ensaios, começou a entreter-se com a digestão. Comia um bocado de carne congelada e sentenciava: «Está no primeiro domínio: o do esófago». Logo a seguir: «Já vai no estômago». Uma hora depois: «Está nas esferas salutares do intestino delgado». E quando ia à retrete: «Ei-lo chegado aos infernos do intestino grosso».
   Um dia, por decisão política da Excelência, paralisou-se-lhe a digestão. Teve de apanhar um clister.
   Mas, como à porta do ânus desfilava nesse instante uma grandiosa manifestação de apoio ao governo, o clister, para sair, procurou o outro lado do tubo em que se transformara a transigência do Joãozinho.
   Morreu de merda na boca, como Cambronne.


José Martins Garcia, in Receitas para Fritar a Humanidade, Companhia das Ilhas, Novembro de 2019, pp. 41-43.

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