segunda-feira, 16 de março de 2020

OS MEUS OLHOS QUE VÊEM E O MEU BRAÇO QUE SE MOVE

   Eu tenho olhos e vejo, cúmplice de Arnhem.
   Os meus pés servem para tocar o chão.
   O meu braço obedece docilmente às minhas ordens. É isto um motivo de surpresa? Nunca o apanhei em falta.
   Tudo me responde. E ninguém compreende que é a este absoluto e infalível controlo sobre mim mesma que eu chamo a minha prisão, a minha cadeia de ferro.
   Frente à janela, uma vez enxaguados os olhos e a fronte, encaro o mundo, reconheço pela enésima vez que nada daquilo que depende de um movimento voluntário da minha parte me está vedado, e que isso cobre quase tudo. E é isso que me desencoraja. Como é asfixiante, não depender senão de mim! Os pronomes na primeira pessoa sucedem-se como missangas de um colar, e cada um deles golpeia-me na nuca e faz-me suar entre os dedos.
   Quanto basta para paralisar um homem.
   Como se só a abdicação fosse moralmente viável, e contudo o pé esquerdo ainda cede ao impulso de se colocar à frente do pé direito.
   A esta época associarei mais tarde a muito nítida consciência do gesto e do olhar como entidades separadas, mas também aguerridamente solidárias.
   Os meus olhos que vêem e o meu braço que se move. Pode-se, afinal, fazer alguma coisa a partir disto?

Alexandre Andrade, in Cinco Contos Sobre Fracasso e Sucesso, Má Criação, 2005, pp. 32-33.

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