terça-feira, 17 de março de 2020

AS ORELHAS DE KARENIN


   Num belíssimo livro (o adjectivo refere-se também ao objecto em si) intitulado “O Que Vemos Quando Lemos”, o designer norte-americano Peter Mendelsund apoia-se em clássicos da literatura universal para ensaiar uma fenomenologia da leitura. O modo como imaginamos as personagens, atribuindo-lhes um corpo físico, um rosto, materializando-as, ainda que elas não passem de abstracções, constrói-se como um puzzle a partir dos elementos sugeridos pelo autor. A questão, como tive oportunidade de referir noutro texto, é: conseguimos gerar na nossa mente elos de proximidade com uma personagem que tornem possível descrevê-la fisicamente? Se pedir a alguém que descreva o aspecto físico de Ana Karenina que resultados obterei? Dois leitores diferentes do romance de Tolstói descreveriam da mesma maneira a personagem por ele concebida? Sucede que uma mesma personagem pode assumir diferentes rostos ao longo de uma narrativa, sucede até que ela possa não ter rosto e se nos apresente como um espectro indefinível. Há uma dimensão monstruosa na literatura que corresponde, precisamente, a esta volubilidade da discrição, já que entre a personagem e a palavra estabelece-se uma relação da mesma natureza daquela que se estabelece entre o objecto físico e a sua sombra. O leitor como que vive no interior da caverna, assistindo a uma procissão de projecções que lhe oferecem um retrato sombrio e monstruoso, no sentido abstracto, da realidade. Interpretar é fazer puzzles, juntar peças, ter a esperança de que elas encaixem umas nas outras para que no final possamos ficar com uma imagem do que foi contado.
   Rita Taborda Duarte (n. 1973) refere-se ao livro de Mendelsund no final do seu livro de poemas “As Orelhas de Karenin seguido de 31 resumos & uma paráfrase” (Abysmo, Setembro de 2019), mas não era sequer necessário chegarmos aí para pensarmos logo em “O Que Vemos Quando Lemos”. A epígrafe pedida de empréstimo a Karenina coloca-nos perante esse desafio maior de toda a literatura, que é o de tentarmos perceber o que sente uma personagem a partir daquilo que nos é dito que ela vê. Para o caso, Karenina vê as orelhas do marido quando desce do comboio em Petersburgo. E o que vê não se resume às cartilagens das orelhas, devendo acrescentar-se ao pormenor o sentimento de que algo mudou no modo como ela olha para o marido. O leitor vê os sentimentos da personagem projectados na forma de ela olhar para o marido. No livro de Rita Taborda Duarte estas transmutações de sentido e de significado operam-se em diferentes campos, dada a complexidade da relação operada entre os poemas e os desenhos de Pedro Proença. O diálogo entre o texto poético e a imagem não tem, neste caso, a simplicidade de um diálogo entre texto e ilustração, pois a relação que aqui encontramos é de um certo distanciamento, não se perdendo nem esgotando em cada um dos domínios uma identidade própria com a sua autonomia intrínseca.
   Acrescente-se, a esta relação entre poema e desenho, aquela que os próprios poemas demonstram, abertamente, com as suas fontes, por assim dizer, ou estímulos, os quais se declaram nos resumos que acompanham cada uma das seis secções do livro: Eucaristia, E Fez-se Cabra, E Fez-se Lume, Orbes, Recolectores, As Orelhas de Karenin. Pode-se resumir um poema como quem resume uma narrativa? Assim parece, embora o tom provocatório do exercício seja assumido. Nessas fontes de escrita encontramos vários autores, entre os quais se destaca Herberto Helder, mas também vozes comuns, quotidianas, misturadas com clássicos da literatura, figuras mitológicas, bíblicas e até um diálogo proveniente de um western de Sergio Leone. O rol de referências é de vasto alcance, de algum modo reorganizado, ou pelo menos sintetizado, no poema-paráfrase final que foi erigido a partir de todos os poemas precedentes.
   A própria organização deste livro respeita, assim, um lado lúdico e experimental que, em termos temáticos, não deixa de surpreender pelo lastro de reflexões que vão deixando acerca da própria natureza do poema. Devemos, não obstante, esclarecer que parte do conteúdo deste livro surge de uma recolha de textos disseminados por publicações anteriores, o que de algum modo contribui para a dispersão temática de “As Orelhas de Karenin”. Não julgo que isso afecte a consistência de um livro que vive, precisamente, do modo como procura encontrar unidade nos fragmentos espalhados sobre o tampo da mesa. Livro-puzzle, se assim podemos dizer, ou jogo de xadrez, como a certa altura se sugere num dos poemas:

RECOLHER 6

Bem vês,
o mundo é este tabuleiro de xadrez
e calhou-me ser rei preto
entre rainhas brancas e peões.

Não é que me preferisse rainha:
bastar-me-ia
a sorte modesta de um peão bastardo
errando adiante
não sabendo sequer como voltar atrás.
Nunca me quis  este rei preto e acossado
avançando fugidio e recuando.

Deus não joga xadrez,
aborrecem-no os ardis de me armadilhar
com roques, xeques e emboscadas;
prefere jogar aos dardos nos momentos
mortos da eternidade.

Legou o xadrez aos homens e
fê-los todos rainhas, muito poucos peões.

À mulher preferiu-a
frígida e aflita, mulher-rei-preto em casa branca
refém no seu passo ínfimo de cabra,
pequeníssimo mundo entre quadrados
ilha de liberdade a toda a volta:
oito poisos armadilhados
em redor.


Rita Taborda Duarte, in As Orelhas de Karenin, com desenhos de Pedro Proença, Abysmo, Setembro de 2019, p. 106.

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