Num belíssimo
livro (o adjectivo refere-se também ao objecto em si) intitulado “O Que Vemos Quando Lemos”, o designer norte-americano Peter Mendelsund apoia-se em clássicos
da literatura universal para ensaiar uma fenomenologia da leitura. O modo como
imaginamos as personagens, atribuindo-lhes um corpo físico, um rosto,
materializando-as, ainda que elas não passem de abstracções, constrói-se como
um puzzle a partir dos elementos sugeridos pelo autor. A questão, como tive
oportunidade de referir noutro texto, é: conseguimos gerar na nossa mente elos
de proximidade com uma personagem que tornem possível descrevê-la fisicamente?
Se pedir a alguém que descreva o aspecto físico de Ana Karenina que resultados
obterei? Dois leitores diferentes do romance de Tolstói descreveriam da mesma
maneira a personagem por ele concebida? Sucede que uma mesma personagem pode
assumir diferentes rostos ao longo de uma narrativa, sucede até que ela possa
não ter rosto e se nos apresente como um espectro indefinível. Há uma dimensão monstruosa
na literatura que corresponde, precisamente, a esta volubilidade da discrição, já
que entre a personagem e a palavra estabelece-se uma relação da mesma natureza
daquela que se estabelece entre o objecto físico e a sua sombra. O leitor como
que vive no interior da caverna, assistindo a uma procissão de projecções que
lhe oferecem um retrato sombrio e monstruoso, no sentido abstracto, da
realidade. Interpretar é fazer puzzles, juntar peças, ter a esperança de que
elas encaixem umas nas outras para que no final possamos ficar com uma imagem do
que foi contado.
Rita Taborda
Duarte (n. 1973) refere-se ao livro de Mendelsund no final do seu livro de
poemas “As Orelhas de Karenin seguido de 31 resumos & uma paráfrase”
(Abysmo, Setembro de 2019), mas não era sequer necessário chegarmos aí para
pensarmos logo em “O Que Vemos Quando Lemos”. A epígrafe pedida de empréstimo a
Karenina coloca-nos perante esse desafio maior de toda a literatura, que é o de
tentarmos perceber o que sente uma personagem a partir daquilo que nos é dito
que ela vê. Para o caso, Karenina vê as orelhas do marido quando desce do
comboio em Petersburgo. E o que vê não se resume às cartilagens das orelhas,
devendo acrescentar-se ao pormenor o sentimento de que algo mudou no modo como
ela olha para o marido. O leitor vê os sentimentos da personagem projectados na forma de ela olhar para o marido. No livro de Rita Taborda Duarte estas transmutações de
sentido e de significado operam-se em diferentes campos, dada a
complexidade da relação operada entre os poemas e os desenhos de Pedro Proença.
O diálogo entre o texto poético e a imagem não tem, neste caso, a simplicidade
de um diálogo entre texto e ilustração, pois a relação que aqui encontramos é
de um certo distanciamento, não se perdendo nem esgotando em cada um dos
domínios uma identidade própria com a sua autonomia intrínseca.
Acrescente-se, a
esta relação entre poema e desenho, aquela que os próprios poemas demonstram,
abertamente, com as suas fontes, por assim dizer, ou estímulos, os quais se
declaram nos resumos que acompanham cada uma das seis secções do livro: Eucaristia,
E Fez-se Cabra, E Fez-se Lume, Orbes, Recolectores, As Orelhas de Karenin. Pode-se
resumir um poema como quem resume uma narrativa? Assim parece, embora o tom
provocatório do exercício seja assumido. Nessas fontes de escrita encontramos
vários autores, entre os quais se destaca Herberto Helder, mas também vozes
comuns, quotidianas, misturadas com clássicos da literatura, figuras
mitológicas, bíblicas e até um diálogo proveniente de um western de Sergio
Leone. O rol de referências é de vasto alcance, de algum modo reorganizado,
ou pelo menos sintetizado, no poema-paráfrase final que foi erigido a partir de
todos os poemas precedentes.
A própria
organização deste livro respeita, assim, um lado lúdico e experimental que, em
termos temáticos, não deixa de surpreender pelo lastro de reflexões que vão
deixando acerca da própria natureza do poema. Devemos, não obstante, esclarecer
que parte do conteúdo deste livro surge de uma recolha de textos disseminados por
publicações anteriores, o que de algum modo contribui para a dispersão temática
de “As Orelhas de Karenin”. Não julgo que isso afecte a consistência de um
livro que vive, precisamente, do modo como procura encontrar unidade nos
fragmentos espalhados sobre o tampo da mesa. Livro-puzzle, se assim podemos
dizer, ou jogo de xadrez, como a certa altura se sugere num dos poemas:
RECOLHER 6
Bem vês,
o mundo é este tabuleiro de xadrez
e calhou-me ser rei preto
entre rainhas brancas e peões.
Não é que me preferisse rainha:
bastar-me-ia
a sorte modesta de um peão bastardo
errando adiante
não sabendo sequer como voltar atrás.
Nunca me quis este
rei preto e acossado
avançando fugidio e recuando.
Deus não joga xadrez,
aborrecem-no os ardis de me armadilhar
com roques, xeques e emboscadas;
prefere jogar aos dardos nos momentos
mortos da eternidade.
Legou o xadrez aos homens e
fê-los todos rainhas, muito poucos peões.
À mulher preferiu-a
frígida e aflita, mulher-rei-preto em casa branca
refém no seu passo ínfimo de cabra,
pequeníssimo mundo entre quadrados
ilha de liberdade a toda a volta:
oito poisos armadilhados
em redor.
Rita Taborda Duarte, in As Orelhas de Karenin, com desenhos
de Pedro Proença, Abysmo, Setembro de 2019, p. 106.
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