(imagens de um mercado chinês ali para os lados da Benedita)
Dou com esta frase num ensaio de George Steiner: «Nenhuma
boa acção fica impune». Trata-se de uma citação de Oscar Wilde, a quem o autor
de “A Poesia do Pensamento” chama «astuto diagnosticador». Confrontados com uma
pandemia, percebemos melhor quão pertinente é tal astúcia. Não é a primeira das
nossas vidas, ao contrário do que por aí se propaga. Aliás, não exagerarei se
considerar a desmemória uma pandemia igualmente nefasta. E aliada a esta uma
total indiferença para com o mal dos outros, como se não fosse também nosso. Dostoiévski
dizia que somos todos culpados de tudo e de todos. Eu não iria tão longe. Não
esqueçamos, porém, a descoberta do HIV na década de 80 do século passado. Já
neste século, o SARS, a febre suína, o MERS, o ébola.
Como sou completamente ignorante em matéria de pandemias,
procuro informar-me. As contingências a isso obrigam. Podia adoptar uma atitude
demagógica e desatar a disparar em todas as direcções, lembrando que em tempos
nos servimos de armas como a varíola para limpar o sarampo aos ameríndios. Ou
sublinhando como, na actualidade, as pandemias da obesidade e do consumismo
desenfreados patrocinam a miséria e a desgraça de milhões de seres humanos
espalhados pelo mundo, dos quais os malogrados náufragos do mediterrâneo são pálida amostra. Não o farei, por respeito aos desafortunados.
À medida que se intensifica a presença do Covid-19 na
pele do mundo civilizado, o tal das culturas ditas superiores, vamos ouvindo também
cada vez mais insistentemente a expressão “vírus chinês”. É uma mania muito
nossa, que vem de tenra idade, esta de apontar aos outros quanto de mau há entre
nós, fazendo como Pilatos fez ou, pior, como o racismo e a xenofobia mandam fazer. A igreja pede que confessemos os pecados, que reconheçamos o mal. É precisamente esse reconhecimento o que nos aproxima de Deus, mas os fiéis e
crentes e devotos da igreja pouco sabem destas coisas. Ao contrário do que Deus lhes ordenou, passam a vida a acusar os outros, apontam o dedo,
seguem o péssimo exemplo de alguns dos seus profetas mais populares (ou
deverei dizer populistas?). Irão todos parar ao inferno, se Deus quiser.
De onde veio, então, a porra do vírus? Não por acaso
citarei um estudo de cientistas norte-americanos divulgado por um jornal
insuspeito de simpatias esquerdistas, o qual é claro em três conclusões: 1. não
se trata de um vírus gerado em laboratório, tipo arma química com a qual os
chineses estão a atacar o mundo; 2. ainda que possamos concluir ter origem no
contacto de seres humanos com animais, não existem certezas quanto a que tipo
de contactos foram esses; 3. a haver um culpado na origem do vírus, esse
culpado encontra-se em comportamentos humanos que não estão confinados a uma
área geográfica: destruição de habitats naturais, aumento do contacto de seres humanos
com animais, grande fluxo de seres humanos a nível global.
Talvez seja conveniente citar uma das cientistas do tal
estudo: «Não é bom transformar uma floresta em agricultura sem entender o
impacto que tem no clima, na captura de carbono, no surgimento de doenças
e no risco de inundações (…). Não se pode fazer isto isoladamente
sem pensar no efeito que terá nos humanos». Eis algo de que nos devemos lembrar
quando voltarmos a discutir a necessidade de proteger as florestas da avidez de
madeireiros e de agricultores, se a pandemia da desmemória ou as premonições da CIA e os vaticínios da pitonisa Sylvia Browne não continuarem a
afectar-nos o bom senso.
Num mundo globalizado é preciso ter em conta, mais do que
nunca, que o bater de asas de uma borboleta num determinado local pode causar
um tornado na parte oposta do mundo. O que está em causa são comportamentos
humanos globais, não exclusivamente locais. Podemos julgar que certos hábitos
alimentares potenciam o aparecimento de certas pestes, mas com que moral
podemos indignar-nos com os mercados de animais na China sem que nos indignemos
igualmente com touradas, corridas de galgos e outros espectáculos de gladiadores
modernos que vão do narcotráfico à pornografia infantil, passando por diversos
níveis de exploração num mercado de trabalho que cheira a sangue? Que virtudes têm as turbovacas alemãs que os morcegos chineses não têm? O massacre das baleias e das focas nos países nórdicos é menos vicioso que o massacre de ursos na China? Quem sabe,
por exemplo, o que se passa com os trabalhadores que no Qatar estão a construir
estádios luxuosíssimos para que possamos entreter-nos com mais um mundial de
futebol em 2022? Isto interessa-nos, enquanto parte integrante do problema, ou
vamos continuar a fingir que não vemos, varrendo mais uma vez para o lado os
males do mundo como se não fossem males de todos nós?
Não, o vírus não é chinês, o vírus não é estrangeiro,
assim como a gripe suína detectada no México em 2009 não era mexicana ou a SIDA
descoberta nos USA em 1981 não era o vírus americano. É também Steiner quem nos
ensina: «A corrupção é o sopro da política, do mercado. O que não está à venda?
A procura do lucro saqueia o que ainda resta das nossas florestas, vandaliza
oceanos, polui a atmosfera. Nas metrópoles do capitalismo urbano, mas também na
misère das favelas, nunca o apelo do dinheiro foi tão descarado». Uma palavra para o ano: açambarcamento.
O que esta pandemia traz de novo é uma dicotomia
alarmante: protegemos vidas ou salvamos a economia? Mais paradoxal, ou até
irónico, é estarmos empenhados em proteger, sobretudo, idosos e pessoas débeis
e vulneráveis pouco depois de termos discutido a eutanásia. E não é tão
estranho que muitos daqueles que mais se opunham/opõem à eutanásia sejam os que
mais preocupações manifestam agora com a economia e os mercados? Pois bem, decidam-se: preferem salvar velhinhos ou a economia? Respondam com todas as letras, por favor: velhos ou mercados?
As dúvidas dão azo a todo o tipo de teorias conspirativas, sendo frequente a de que tudo não passa de um estratagema chinês para assaltar a economia mundial ou para controlo demográfico interno. Podemos até supor ter-se tratado de uma arma para encafuar manifestantes em casa, atenuando protestos e contestações ao regime. Sairá cara a táctica. A interdependência económica desmente tais teorias. Que vantagem terá uma economia pujante como a chinesa em se debilitar e, sobretudo, dar cabo das economias dos seus principais clientes? Que interesse terá o regime chinês em matar velhinhos para, ao mesmo tempo, se empenhar tremendamente na sua protecção, tratamento, cura?
Outra acusação curiosíssima é a de que a China sabia da epidemia desde Novembro e nada disse. Vejamos: já toda a gente sabia o que se passava na China e, pelo mundo ocidental, falava-se de invenção dos media, histeria, medo exagerado. O discurso era de absoluta negação da gravidade do problema, com Boris a sugerir para Inglaterra que toda a gente ficasse infectada de modo a atingir-se a imunidade de grupo, Jair a acusar os jornalistas de manipularem os eleitores com fake news, Trump a garantir que dava conta do recado:
As dúvidas dão azo a todo o tipo de teorias conspirativas, sendo frequente a de que tudo não passa de um estratagema chinês para assaltar a economia mundial ou para controlo demográfico interno. Podemos até supor ter-se tratado de uma arma para encafuar manifestantes em casa, atenuando protestos e contestações ao regime. Sairá cara a táctica. A interdependência económica desmente tais teorias. Que vantagem terá uma economia pujante como a chinesa em se debilitar e, sobretudo, dar cabo das economias dos seus principais clientes? Que interesse terá o regime chinês em matar velhinhos para, ao mesmo tempo, se empenhar tremendamente na sua protecção, tratamento, cura?
Outra acusação curiosíssima é a de que a China sabia da epidemia desde Novembro e nada disse. Vejamos: já toda a gente sabia o que se passava na China e, pelo mundo ocidental, falava-se de invenção dos media, histeria, medo exagerado. O discurso era de absoluta negação da gravidade do problema, com Boris a sugerir para Inglaterra que toda a gente ficasse infectada de modo a atingir-se a imunidade de grupo, Jair a acusar os jornalistas de manipularem os eleitores com fake news, Trump a garantir que dava conta do recado:
Face a isto, só faz sentido denunciar um putativo encobrimento
das autoridades chinesas se fizermos acompanhar essa denúncia de uma evidência:
muito depois de não ser possível encobrir mais (a OMS foi informada a 31 de Dezembro, datando de 17 de Novembro o primeiro caso detectado de um novo coronavírus), muitos daqueles que sabiam do que se
estava a passar encolheram os ombros, assobiaram para o lado e disseram que não
era nada com eles. A primeira declaração de Donald Trump acerca do tema data de Janeiro, como se pode comprovar no vídeo acima. Registe-se como foi esse "vírus americano" lidando com o assunto.
Entretanto, o rumo noticioso é outro: China oferece milhões de máscaras e kits de protecção, envia equipas de contenção para Itália (criticando, aliás, a leveza das restrições impostas); Cuba envia para Itália médicos que combateram o ébola; Rússia envia 100 médicos militares especialistas em epidemia e virologia… Deve ser a isto que chamam ofensiva socialista. Fica claro quem tem contribuído para mitigar o problema e quem, com irresponsabilidade, negligência, laxismo e leviandade apenas contribui para o agravar. Mais de 12000 mortos no mundo talvez não sejam um problema. Como diria Bolsonaro, são velhinhos e pessoas com outras doenças. O corona foi o último a chegar.
Entretanto, o rumo noticioso é outro: China oferece milhões de máscaras e kits de protecção, envia equipas de contenção para Itália (criticando, aliás, a leveza das restrições impostas); Cuba envia para Itália médicos que combateram o ébola; Rússia envia 100 médicos militares especialistas em epidemia e virologia… Deve ser a isto que chamam ofensiva socialista. Fica claro quem tem contribuído para mitigar o problema e quem, com irresponsabilidade, negligência, laxismo e leviandade apenas contribui para o agravar. Mais de 12000 mortos no mundo talvez não sejam um problema. Como diria Bolsonaro, são velhinhos e pessoas com outras doenças. O corona foi o último a chegar.
Nota: As referência a George Steiner provêm do livro Fragmentos
(Um Pouco Queimados), tradução de Ana Matoso, Relógio D’Água, Maio de 2016.
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