segunda-feira, 23 de março de 2020

NENHUMA BOA ACÇÃO FICA IMPUNE

(imagens de um mercado chinês ali para os lados da Benedita)


   Dou com esta frase num ensaio de George Steiner: «Nenhuma boa acção fica impune». Trata-se de uma citação de Oscar Wilde, a quem o autor de “A Poesia do Pensamento” chama «astuto diagnosticador». Confrontados com uma pandemia, percebemos melhor quão pertinente é tal astúcia. Não é a primeira das nossas vidas, ao contrário do que por aí se propaga. Aliás, não exagerarei se considerar a desmemória uma pandemia igualmente nefasta. E aliada a esta uma total indiferença para com o mal dos outros, como se não fosse também nosso. Dostoiévski dizia que somos todos culpados de tudo e de todos. Eu não iria tão longe. Não esqueçamos, porém, a descoberta do HIV na década de 80 do século passado. Já neste século, o SARS, a febre suína, o MERS, o ébola.
   Como sou completamente ignorante em matéria de pandemias, procuro informar-me. As contingências a isso obrigam. Podia adoptar uma atitude demagógica e desatar a disparar em todas as direcções, lembrando que em tempos nos servimos de armas como a varíola para limpar o sarampo aos ameríndios. Ou sublinhando como, na actualidade, as pandemias da obesidade e do consumismo desenfreados patrocinam a miséria e a desgraça de milhões de seres humanos espalhados pelo mundo, dos quais os malogrados náufragos do mediterrâneo são pálida amostra. Não o farei, por respeito aos desafortunados.
   À medida que se intensifica a presença do Covid-19 na pele do mundo civilizado, o tal das culturas ditas superiores, vamos ouvindo também cada vez mais insistentemente a expressão “vírus chinês”. É uma mania muito nossa, que vem de tenra idade, esta de apontar aos outros quanto de mau há entre nós, fazendo como Pilatos fez ou, pior, como o racismo e a xenofobia mandam fazer. A igreja pede que confessemos os pecados, que reconheçamos o mal. É precisamente esse reconhecimento o que nos aproxima de Deus, mas os fiéis e crentes e devotos da igreja pouco sabem destas coisas. Ao contrário do que Deus lhes ordenou, passam a vida a acusar os outros, apontam o dedo, seguem o péssimo exemplo de alguns dos seus profetas mais populares (ou deverei dizer populistas?). Irão todos parar ao inferno, se Deus quiser.
   De onde veio, então, a porra do vírus? Não por acaso citarei um estudo de cientistas norte-americanos divulgado por um jornal insuspeito de simpatias esquerdistas, o qual é claro em três conclusões: 1. não se trata de um vírus gerado em laboratório, tipo arma química com a qual os chineses estão a atacar o mundo; 2. ainda que possamos concluir ter origem no contacto de seres humanos com animais, não existem certezas quanto a que tipo de contactos foram esses; 3. a haver um culpado na origem do vírus, esse culpado encontra-se em comportamentos humanos que não estão confinados a uma área geográfica: destruição de habitats naturais, aumento do contacto de seres humanos com animais, grande fluxo de seres humanos a nível global.
   Talvez seja conveniente citar uma das cientistas do tal estudo: «Não é bom transformar uma floresta em agricultura sem entender o impacto que tem no clima, na captura de carbono, no surgimento de doenças e  no risco de inundações (…). Não se pode fazer isto isoladamente sem pensar no efeito que terá nos humanos». Eis algo de que nos devemos lembrar quando voltarmos a discutir a necessidade de proteger as florestas da avidez de madeireiros e de agricultores, se a pandemia da desmemória ou as premonições da CIA e os vaticínios da pitonisa Sylvia Browne não continuarem a afectar-nos o bom senso. 
   Num mundo globalizado é preciso ter em conta, mais do que nunca, que o bater de asas de uma borboleta num determinado local pode causar um tornado na parte oposta do mundo. O que está em causa são comportamentos humanos globais, não exclusivamente locais. Podemos julgar que certos hábitos alimentares potenciam o aparecimento de certas pestes, mas com que moral podemos indignar-nos com os mercados de animais na China sem que nos indignemos igualmente com touradas, corridas de galgos e outros espectáculos de gladiadores modernos que vão do narcotráfico à pornografia infantil, passando por diversos níveis de exploração num mercado de trabalho que cheira a sangue? Que virtudes têm as turbovacas alemãs que os morcegos chineses não têm? O massacre das baleias e das focas nos países nórdicos é menos vicioso que o massacre de ursos na China? Quem sabe, por exemplo, o que se passa com os trabalhadores que no Qatar estão a construir estádios luxuosíssimos para que possamos entreter-nos com mais um mundial de futebol em 2022? Isto interessa-nos, enquanto parte integrante do problema, ou vamos continuar a fingir que não vemos, varrendo mais uma vez para o lado os males do mundo como se não fossem males de todos nós?
   Não, o vírus não é chinês, o vírus não é estrangeiro, assim como a gripe suína detectada no México em 2009 não era mexicana ou a SIDA descoberta nos USA em 1981 não era o vírus americano. É também Steiner quem nos ensina: «A corrupção é o sopro da política, do mercado. O que não está à venda? A procura do lucro saqueia o que ainda resta das nossas florestas, vandaliza oceanos, polui a atmosfera. Nas metrópoles do capitalismo urbano, mas também na misère das favelas, nunca o apelo do dinheiro foi tão descarado». Uma palavra para o ano: açambarcamento.
   O que esta pandemia traz de novo é uma dicotomia alarmante: protegemos vidas ou salvamos a economia? Mais paradoxal, ou até irónico, é estarmos empenhados em proteger, sobretudo, idosos e pessoas débeis e vulneráveis pouco depois de termos discutido a eutanásia. E não é tão estranho que muitos daqueles que mais se opunham/opõem à eutanásia sejam os que mais preocupações manifestam agora com a economia e os mercados? Pois bem, decidam-se: preferem salvar velhinhos ou a economia? Respondam com todas as letras, por favor: velhos ou mercados? 
   As dúvidas dão azo a todo o tipo de teorias conspirativas, sendo frequente a de que tudo não passa de um estratagema chinês para assaltar a economia mundial ou para controlo demográfico interno. Podemos até supor ter-se tratado de uma arma para encafuar manifestantes em casa, atenuando protestos e contestações ao regime. Sairá cara a táctica. A interdependência económica desmente tais teorias. Que vantagem terá uma economia pujante como a chinesa em se debilitar e, sobretudo, dar cabo das economias dos seus principais clientes? Que interesse terá o regime chinês em matar velhinhos para, ao mesmo tempo, se empenhar tremendamente na sua protecção, tratamento, cura? 
   Outra acusação curiosíssima é a de que a China sabia da epidemia desde Novembro e nada disse. Vejamos: já toda a gente sabia o que se passava na China e, pelo mundo ocidental, falava-se de invenção dos media, histeria, medo exagerado. O discurso era de absoluta negação da gravidade do problema, com Boris a sugerir para Inglaterra que toda a gente ficasse infectada de modo a atingir-se a imunidade de grupo, Jair a acusar os jornalistas de manipularem os eleitores com fake news, Trump a garantir que dava conta do recado:


   Face a isto, só faz sentido denunciar um putativo encobrimento das autoridades chinesas se fizermos acompanhar essa denúncia de uma evidência: muito depois de não ser possível encobrir mais (a OMS foi informada a 31 de Dezembro, datando de 17 de Novembro o primeiro caso detectado de um novo coronavírus), muitos daqueles que sabiam do que se estava a passar encolheram os ombros, assobiaram para o lado e disseram que não era nada com eles. A primeira declaração de Donald Trump acerca do tema data de Janeiro, como se pode comprovar no vídeo acima. Registe-se como foi esse "vírus americano" lidando com o assunto.
   Entretanto, o rumo noticioso é outro: China oferece milhões de máscaras e kits de protecção, envia equipas de contenção para Itália (criticando, aliás, a leveza das restrições impostas); Cuba envia para Itália médicos que combateram o ébola; Rússia envia 100 médicos militares especialistas em epidemia e virologia… Deve ser a isto que chamam ofensiva socialista. Fica claro quem tem contribuído para mitigar o problema e quem, com irresponsabilidade, negligência, laxismo e leviandade apenas contribui para o agravar. Mais de 12000 mortos no mundo talvez não sejam um problema. Como diria Bolsonaro, são velhinhos e pessoas com outras doenças. O corona foi o último a chegar.


Nota: As referência a George Steiner provêm do livro Fragmentos (Um Pouco Queimados), tradução de Ana Matoso, Relógio D’Água, Maio de 2016.

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